BOBAGENS
Ana Terra

Dizer que foi mais um dia chuvoso é besteira. Já virou rotina. Água lá fora. E minhas gotas aqui dentro. Tão minhas que preciso de balde para apará-las. E no pim-pim um embalo para o tédio, alegria, paz, dispersão e delírios.

Sinto o perfume do mofo. Vejo-me no passado. Vontade de decorar a casa com teias de aranha. Mas não. Hoje estou atemporal. Não saberia definir a palavra calendário. Estou apenas sendo.

Na rua, cabelos molhados grudados na testa. Filas. Pessoas com carteira e papéis na mão. Pagando a ilusão de estarem vivos. Acertando as contas com utopia da vida.

Vivos? Acho que não. A existência só se manifesta quando estamos nus e de olhos fechados. O corpo aquecido por outro num roçar que nada lembra a turbulência lá fora.

Chego em casa tranqüila. Olho a sala desarrumada. No sofá um livro de contos da Clarice: Via Crucis do Corpo.

Não quero que o livro volte para a estante. Há dias está ali. E vai continuar. Gostei do contraste do branco da capa com o azul do revestimento. O título sugere vida vivida. Colocado, displicentemente, por mãos brancas e macias.

Deixo a lembrança ali. Sorrio e continuo com a via crucis do corpo que está com fome. Canto para minha sombra negra.

Você percebeu que não sei como dizer. Por isto esta torrente de bobagens.

 

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