PARA S. OUVIR
Shirley Kühne
S.
Preciso organizar o mundo. Muitas vezes não falo. Não sei como
dizer ou não sei exatamente o que sinto. Sinto. Como agora. Quero acertar
o alvo. Preciso falar, ou melhor, escrever, sobre olhar, experimentar, sentir.
Neste meu ritual, esta preparação para ir além do que os
sentidos podem provar, me percebo e lá está você novamente
ajudando a montar e embaralhar o quebra-cabeça; a imagem que falta surge;
desfocada, os desejos, as palavras, as sensações, os sons, eu
mesma.
Parece que não tenho nada a dizer, fico quieta, meus demônios cochilam
mas me cochicham, eu sei. Por isso estou escrevendo. Eu poderia dizer tanta
coisa, o que já me desesperou, mas não conseguiria recuperar o
sentido. É a armadilha a que estamos irremediavelmente atados. Vemos
o outro se debatendo para desatar os seus nós, vemos até as várias
pontas da corda, mas não sabemos como se sente quem está amarrado
ou qual nó é essencial desatar, por onde começar. E há
que se perceber os nós que não se podem desmanchar, sob o risco
de toda a estrutura ruir. E sentimos como apertam as nossas amarras e não
temos as mãos livres para desatá-las, e se as temos em algum momento
especial, temos medo. Você bem sabe. Corremos o risco de ruir. Para o
bem e para o mal.
Tenho nostalgia do que quase acreditei. E porque foi quase, não pode
existir. E tinha muito medo de perder você. Bobagem. Como poderia perder
o que não era meu? Hoje me parece diferente. Tendo perdido você,
agora eu o tenho, faz parte de mim, e não é possível fazer
nada a este respeito. "Solidão é um método maluco
de saber quem está dentro de você....", cantou um amigo poeta
paranaense.
É quase impossível o outro.
Mas há milagres. Sabemos que há. Eu não acredito, mas me
acontece. Preciso ser surpreendida. Você não. Você acredita,
mas não sabe se vai lhe acontecer. E quando acontece, você sabe
que é? Acredita?
Gostaria de poder carregar você. Algum dia te carregar. Andarmos pelas
pedras, a transparência da água, vento e sol confundindo a pele,
e de repente o espelho do mar embalado nas ondas, o movimento da areia. Os bichos
crescendo nas pedras, escondidos. Ostras. Mariscos. E se pudessemos tirá-los?
Uma refeição do mar. O sal. O doce e o amargo nós temos.
Nesta praia tem pedras, pérolas talvez nas conchas. E, às vezes,
sol e lua. Gostaria que viesse. Me ligue. Só precisa do código
da operadora. Aliás, não precisa de nada. Venha.
G.
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