CRÔNICA INDIGNADA DE UM ALLEGRO MISANTROPO
Sérgio Galli

 

(ao som do Réquiem Alemão, de Johannes Brahms e Interstelar Space, de John Coltrane)

"...Isso deve fazer com que nos desfaçamos, já que de início, do termo desenvolvimento, mesmo emendado ou edulcorado como desenvolvimento durável, sustentável ou humano. A idéia de desenvolvimento sempre comportou uma base tecnoeconômica, mensurável pelos indicadores de crescimento e de renda. Ela supõe de maneira implícita que o desenvolvimento tecnoeconômico é a locomotiva que arrasta atrás de si, naturalmente, um desenvolvimento humano cujo modelo completo e bem-sucedido é aquele dos países renomados e desenvolvidos ou, em outras palavras, ocidentais. Esta visão supõe que o estado atual das sociedades ocidentais constitui o objetivo e a finalidade da história humana.
O desenvolvimento durável não faz mais do que temperar o desenvolvimento com a consideração do contexto ecológico, mas sem questionar seus princípios; no desenvolvimento humano, a palavra humano apresenta-se vazia de qualquer substância, a menos que remeta ao modelo humano ocidental que, por certo, comporta traços essencialmente positivos, mas também, é sempre bom repetir, certos traços essencialmente negativos.
O desenvolvimento, noção aparentemente universalista, também constitui um mito típico do sociocentrismo ocidental, um motor de ocidentalização forçada, um instrumento de colonização de subdesenvolvidos (o Sul) pelo Norte. Como justamente diz Serge Latouche, esses valores ocidentais (do desenvolvimento) são precisamente aqueles que é preciso pôr em causa para encontrar solução para os problemas do mundo contemporâneo (Le Monde Diplomatique, maio de 2001)..."

Edgar Morin

 

Depois dessa longa mas imprescindível epígrafe fica difícil dizer mais alguma coisa. Vamos tentar. A pretexto de uma falsa polêmica: desenvolvimento versus ecologia. Primeiramente, desculpem-me pela epígrafe, mas ela é necessária. Segundamente, sei que vou gastar meu cérebro e tinta à toa. Afinal, o pensamento único é hegemônico não por acaso. Mas vamos aos fatos.
Somos um primata bípede pretensioso e arrogante. Somos um dos seres vivos mais recentes do planeta. O percevejo, o cupim, o piolho têm milhares e milhares de anos - sem falar nas bactérias - ou seja, têm mais direitos sobre a Terra do que nós, ditos homo sapiens. Somos os maiores predadores, destruidores e cruéis seres. Pior que qualquer erva daninha. Nesse pouco tempo que estamos no planeta fizemos a maior destruição da história. Maior que a do meteorito que matou os dinossauros e, infelizmente, possibilitou a nossa existência. Aqui no Brasil, um singelo mas pungente exemplo: depois de destruir e devastar a mata atlântica, o cerrado, vamos céleres a caminho da destruição da Amazônia. Para quê? Criar pastos, plantar essa praga chamada soja. Pensem que a soja é para alimentar os milhares de famintos? Ledo engano. A soja vira ração de gado que, num passe de mágica, transforma-se em big mac a ser consumido por algumas dezenas de jovens numa loja de fésti fudi na Praça Vermelha, em Moscou. E para colaborar com a devastação amazônica, o presidente da República disse algo como "não podemos tratar a Amazônia como um santuário ecológico...". A calhordice venceu a esperança.
Para ajudar a compreender esse raciocínio vale a pena mais uma citação; "...do relatório em que o WWF e o Programa das Nações para o Meio Ambiente (Pnuma) demonstram que o uso atual de recursos naturais no mundo já excede em 42,5% a capacidade de renovação da biosfera, considerados os consumos de alimentos, de materiais e de energia. Isso com a atual distribuição mais do que injusta, já que menos de 20% da população mundial, que vive nos países industrializados, responde por mais de 80% do consumo total. Enquanto isso, alguns países mais pobres parecem estar sendo varridos do mapa da História. Se cada ser humano consumir recursos naturais e emitir dióxido de carbono nos níveis dos cidadãos norte-americanos, alemães ou franceses, diz o relatório WWF-Pnuma, seriam necessários pelo menos mais dois planetas como recursos equivalentes aos do nosso...", Washington Novaes, O Estado de S. Paulo, 3/11/2000. Ou seja, lembro o escritor português José Saramago, estamos cegos diante dos fatos, diante do que não queremos enxergar, diante da sujeira que entope nosso nariz e preferimos jogar debaixo do tapete, melhor nos rios que fornecem a água da qual beberemos, da qual a vida depende. Enfim, estamos cegos, a cegueira branca que não impede que caminhemos a marcha da insensatez rumo a extinção da espécie, que espero, seja o mais breve possível.
De volta ao princípio e na mesma toada. Quando se opta pela construção do rodoanel mesmo quando se sabe sobre o risco de destruir um manancial responsável pelo abastecimento de água de milhões de pessoas de uma grande metrópole, pode-se perceber a força que tem as indústrias automobilística e petrolífera. O mesmo argumento vale para as infindáveis obras viárias - avenidas, túneis, viadutos - na maioria das cidades, particularmente nas metrópoles, que mais uma vez privilegiam o transporte individual. Parece que ainda não nos demos conta do prejuízo incalculável que o automóvel trouxe. Mudou completamente a arquitetura das cidades. Melhor, chega de eufemismos: destruiu as cidades. Obrigou as pessoas a deslocamentos - da casa para o trabalho e vice-versa - cada vez mais a distancias maiores. As pessoas tornaram-se escravas do automóvel e as cidades, reféns. Isto é progresso? Na verdade, criou-se a ilusão da velocidade. Nos rotineiros engarrafamentos das grandes cidades a velocidade média é de 10 quilômetros por hora, ou seja, a mesma, senão menor, velocidade das charretes, dos fiacres de 100, 150 atrás. Com uma vantagem: a poluição causada pelos cavalos - o estrume - ao menos serve como adubo, já o dióxido de carbono exalado pela crescente frota de automóveis é causa de inúmeras doenças, isso sem falar das mortes violentas dos chamados impropriamente de "acidentes de trânsito" causados por essa máquina mortífera.. Índices já superiores há muitas guerras. O automóvel inviabilizou a cidade. Deixou-as poluídas, barulhentas, sujas, feias e malvadas. Expulsou as pessoas. Tomou conta das ruas, que eram lugar de passeio. Depois invadiu as calçadas, as casas... Acabou com as praças. Então construiu centros comerciais. Finalmente, a ilusão final. A ironia suprema. Para sair do sufoco da cidade as pessoas querem ir para o campo - quem pode, claro - e então construíram algo tipo alphaville... Mas todos têm vir trabalhar na cidade... e voltar para o "campo"... com engarrafamentos agora nas estradas... Que bela qualidade de vida! O que dizer dessa espécie que se jacta de ser racional, sábia e que se submete a uma máquina. Isso é liberdade? A única "liberdade" que existe é a de escolher entre as dezenas de marcas de automóvel, de sabonete, de pasta de dentes, de refrigerante...Só para terminar este parágrafo milhares de iraquiano, afegãos e outros povos estão sendo torturados e mortos para sustentar o combustível da picape ultramoderna de algumas dezenas de motoristas de Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos da América.
Resumo da ópera bufa (ou trágica?) é uma equação e uma rima pobre: produção=destruição= extinção. Voltaremos ao assunto.

ps: dica de leitura: "Fausto", de Goethe e a sua variação, "Doutor Fausto", de Thomas Mann.


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