COMEÇAR
DE NOVO
Ivone Carvalho
Um nó sufocava o seu peito. Sabia o quanto tinha sido enganada durante todo o tempo que viveram juntos. Engolia todas as mentiras, fechava os olhos a todos os atos que, tão claramente, denunciavam traições, indiferença, ofensas.
Era, ainda, muito menina, quando se apaixonou perdidamente por ele.
Contrariando todos os conselhos e até imposições dos seus pais, largou tudo para seguir aquele homem que lhe prometia uma vida de sonhos e o trono de rainha.
Ele, bem mais velho que ela, mostrava maturidade, determinação, experiência e cansaço de viver sozinho, vez ou outra namorando alguma mulher que não conseguia despertar qualquer sentimento maior que o levasse a pensar em compromisso sério.
A exigência única, imposta por ele, era o abandono dos estudos para dedicar-se exclusivamente ao lar que formariam e aos filhos que teriam.
E foi assim que ela decidiu acompanhá-lo, sem se casar, pois seus pais não aprovavam a união de ambos e jamais assinariam a autorização para o casamento com ele.
Vieram os filhos. Dois meninos. Crianças encantadoras que receberam dos pais muito carinho e a melhor educação possível. Pareciam uma família feliz, onde os risos e as brincadeiras eram parte dominante do dia-a-dia.
Ela jamais demonstrou às crianças o quanto se sentia só e infeliz, por não receber do companheiro o amor que fingia receber. Na verdade, o amor que sonhava receber quando decidiu abandonar os seus pais e acompanhá-lo na promessa de que seria para sempre.
E os anos passaram. Ah! O tempo! Só ele é testemunha de quanta coisa é adiada na expectativa de que ele traga as soluções! E a tristeza foi tomando conta do seu coração, contribuindo, paulatinamente, com o envelhecimento de sua alma e do seu corpo, porque nem mesmo vontade de se cuidar existia mais. Quando percebia que estava deixando morrer a beleza que emoldurava seu rosto e seu corpo, ela reagia. Buscava se arrumar melhor, maquiando-se, comprando roupas novas e mais modernas, fazendo exercícios, caminhadas, dietas.
Mas nada disso adiantava muito, porque a falta de beleza estava dentro do seu peito. Era difícil encontrar uma razão maior para se mostrar bela. A quem? Aos filhos que pouco ficavam em casa e estavam, agora, preocupados com os seus trabalhos e suas namoradas? Ao marido? Que entrava em casa, falava o estritamente necessário, ia sempre dormir antes dela, dizendo-se cansado e já nem vinha mais almoçar em casa? Quantos jantares feitos com carinho, pensando em agradar à família, ensaiando pratos novos, mesa bem posta, flores espalhadas pela casa, sem que qualquer deles viesse ao menos para fazer-lhe companhia no jantar?
Ela estava cansada de tudo isso! Queria sentir-se amada, importante, querida, imprescindível à sua família, mas ninguém parecia notar a sua necessidade.
E a decisão foi chegando pouco a pouco. Jogar tudo para o alto, recomeçar. Com o próprio companheiro? Não! Seria impossível, pois ela não tinha a mínima dúvida de que já não existia amor entre eles e que a vida inteira ela fora uma grande mentira na vida dele. Pensando melhor, a vida deles tinha sido u'a mentira, com exceção dos filhos que ela amava tanto e por quem, tinha certeza, sacrificara-se a manter aquela união por tantos longos anos.
Então, como recomeçar? Para onde ir? Tinha abandonado a família na adolescência e agora não seria justo bater à porta dos pais pedindo abrigo. Não tinha concluído os estudos, jamais tinha trabalhado fora do lar.
E os filhos? Como reagiriam? Bem ou mal, eles vinham sempre para casa e mesmo que mal conversassem, contavam com a presença dela. Sempre fora assim.
Mas alguma coisa ela precisava fazer. Não suportava mais aquela solidão, aquele desespero que lhe batia à porta diuturnamente, aquele vazio imenso que se apossava, cada vez mais, do seu coração e da sua vida.
Talvez se conversasse com alguém, se abrisse o seu coração... Mas, para quem, se a todos ela havia representado o papel de mulher feliz por todo o tempo?
Não sabia, ainda o que fazer, para onde ir. Só tinha uma certeza: nada poderia continuar daquele jeito.
E passou mais uma noite sem dormir, desta vez, com a decisão já tomada, restando somente escolher o caminho a seguir após sair de casa. E, o mais importante de tudo, naquele momento: como dizer ao companheiro e aos filhos que tinha que ir embora para tentar ser feliz.
Com olheiras, o coração apertado e sentindo as lágrimas no rosto, passou o dia separando alguns dos seus pertences, o que seria mais importante para começar uma nova vida.
Talvez iria para o Aeroporto e pegaria o primeiro vôo para qualquer parte do mundo. Ou, quem sabe, decidiria, na rodoviária, uma cidade qualquer, bem distante. Acomodada em algum hotel, com a iniciativa tomada, seria mais fácil pensar no segundo passo e definir seu futuro.
E com todos esses pensamentos, arrumou a casa, preparou o jantar, deixou suas malas prontas, vestiu-se de forma confortável, mas sentindo-se bela. Afinal de contas, iria viajar, embora não tivesse idéia, ainda, para onde ir.
A noite chegou. As horas foram passando e ninguém chegava. O nervoso aumentava. Seu coração batia descompassado. Precisava pôr fim àquela situação o quanto antes. Ainda não sabia bem o que dizer, mas diria! Abriria seu coração e tinha certeza de que nenhuma palavra a faria mudar de idéia. Estava decidida mesmo!
Por volta das nove horas a campainha tocou. Que hora errada para chegar alguém! Ninguém costumava lhe fazer visitas e justo aquela noite tinha que acontecer alguma coisa para estragar os seus planos?
Abriu a porta e logo reconheceu o homem que ali estava. Seu corpo tremeu.
E, após ouvi-lo, a única coisa que sentiu, naquele momento, foi o alívio por não ter que cumprir o que planejara, nem tampouco dizer ao marido e aos filhos o que ela ainda não sabia como iria dizer.
Sua vida, de qualquer forma, iria recomeçar.
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