SEU ELIAS
Osvaldo Luiz Pastorelli
- Tudo corre dentro de uma seqüência
voraz, dizia ele.
Sua voz de barítono, num tom calmo que não
se elevava, permanecia sempre na mesma tonalidade, numa linearidade quase caprichada
que quem ouvia se encantava. Por outro lado sua voz não era as das piores, não.
Era até bem agradável ouvi-lo. Ela tinha um movimento continuo lento
percorrendo a mesma faixa de pressão auditiva.
- Os movimentos se coordenam com os
princípios de cada individuo. Não, místico não sou, nem sensitivo, muito menos
paranóico, sorriu mostrando os dentes terrivelmente brancos que doíam os olhos.
Estudioso, vamos dizer, apenas curiosidade em conhecer os concêntricos
movimentos da alma humana a girar na cosmografia da vida. Percorro a extensão
que leva ao limite imposto pela força divina cruzando e se interpenetrando com
a força humana, essa força fraca, desprezível. Há uma luta invencível onde ora
um é mais forte ora é mais fraco querendo se impor sem conseguir, pois as duas
forças lutam ferrenhamente. É como o vai e vem das ondas estrepitosa na areia
da praia e nos rochedos protetores. Por sermos mesquinhos frágeis sofremos. Eu
talvez mais intensamente, pois não tenho medo em mexer na ferida. É necessário para
que ela sare. Quando percebo o movimento da seqüência, aquela que me é mais
nítida, construo meu sentimento aclopado a esse
movimento tracejando o caminho sem me importar com o perigo. Percorro num passo
ritmado todas as sendas, todos os desvios, todos os parâmetros da fase que me
domina.
A sala pequena estava cheia. Atentos
ouviam-no. Alguns permaneciam com o olhar no longínquo do passado. Talvez
tentando se situar nos cantos da memória revivendo sua história. Outros não
prestavam mesmo atenção no vozeirão do seu Elias que numa plataforma
improvisada discursava sua teoria.
- Hoje ele está bem falante com bastante
ouvinte. - disse Helena.
- Mas você reparou que fase de lua que
estamos? - Perguntou Rosilda.
- Não.
- Lua cheia. Na lua cheia ele fica mais tagarela.
- Ainda bem que não vira lobisomem.
Riram as duas.
- E dentro dessa dominação louca, voraz,
alucinante é que os parâmetros que me levam a agir dessa ou daquela maneira.
Isso acontece com vocês também. Vocês que aceitam os dissabores do destino imposto
por mãos que nada tem com vocês. Mãos que levam e trazem vocês como marionetes
desengonçadas.
- Marionetes... Disse uma voz pausadamente
vinda do fundo.
- Sim, marionetes que se deixam atrofiar
por estarem num lugar desagradável e...
Nisso um sino forte se fez ouvir. Alguns
dos ouvintes levantaram-se e taparam o ouvido. Outros começaram a berrar alto
que não se conseguia mais ouvir o que seu Elias dizia.
- Outra vez esse sino?
- Sim outra vez, - disse Helena- está na hora, vamos seu Elias.
Seu Elias desceu da plataforma improvisada
e entrou na fila junto com os outros. Passavam pelo balcão onde Rosilda lhes dava uma colherada de remédio prescrito na
prancheta de cada um. Era meio demorado porque cada paciente tinha o seu
remédio e ela precisava olhar na prancheta, pegar o remédio, colocar na colher
e dar na boca deles. Quando o último acabou de tomar o remédio, que era sempre
o seu Elias, sendo conduzido por Helena até o seu quarto, as luzes foram
apagadas e o silêncio invadiu todas as dependências.
As duas enfermeiras foram para o seu
quartinho onde ficariam a noite toda acordada. De hora
em hora deveriam passar pelas camas de cada um e verificar se estava tudo
correto, se os pacientes dormiam.
Seu Elias deitado olhava a lua brilhando
no céu prateado de estrelas. Esperava,
daqui a pouco sabia que lhe aconteceria como das outras vezes, mas só que agora
teria êxito. O clarão da lua
lentamente caminhava passando pela janela e alcançado seu Elias. A lua na sua fase de lua cheia já atingia seu rosto
quando Rosilda fazendo a ronda viu que seu Elias se
mexia de uma maneira esquisita. Rosilda
chegou mais perto e foi nesse momento que a lua atingiu em cheio o rosto do seu
Elias.
Muda sem conseguir gritar Rosilda caiu desmaiada, ao mesmo tempo em que uma sombra peluda
pulando a janela ganha a noite lançando para a lua seu uivo de agradecimento.
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