A
MULHER ESSENCIAL
Luís
Valise
-
Fodam-se as promessas, feitas para serem quebradas! Sou, sim,
fraco de caráter, e daí? Como um alcoólatra, sou incapaz de parar após
o primeiro gole. E hoje eu quero mais, eu quero muito, eu quero tudo,
eu quero ela. Falava
com veemência enquanto dirigia como um robô, sem prestar atenção no
caminho que conhecia de cor. Os ocupantes dos carros ao redor viam o
homem que soltava impropérios em voz alta, se maldizia, socava o volante,
como se falasse para uma platéia atenta num teatro vazio, já que estava
só dentro do carro. Ao
chegar estacionou e deixou-se ficar um tempo sentado,
quieto, ensaiando o primeiro passo. Havia luz no quarto. Ela
estava lá, janelas fechadas, proteção inútil em noites de lua plena
como aquela. Uma última praga antes de sair do carro. Ao atravessar
a rua Rudolph sorriu para a lua gorda e encheu
os olhos de prata. O
elevador subia devagar enquanto ele se lembrava de todas as promessas,
tão vãs, de nunca mais procura-la, nunca mais
sentir o feitiço daqueles olhos de esconderijo, faróis certeiros que
batiam em cheio contra a sua solidão. Trazia a chave no bolso, porém
preferiu bater à porta. Dois toques fortes, dois fracos e outro forte.
Não ouvia seus passos. Com certeza descalça, como sempre. A lembrança
dos pezinhos nus sobre o tapete branco fez seu sangue escorrer para
o ventre. O coração pulsou mais forte, súbito olfato de lobo sentindo
a presa úmida atrás da porta fechada. Encostou o corpo na madeira, o
suor porejou a barba rascante. Por que demorava? Sussurrou: -
Irene... sou eu... abra... desta vez é pra sempre... eu prometo...
Irene... Silêncio.
Sentiu uma certa aflição. Tranqüilizou-se ao tocar no bolso a chave
da porta. Por que demorava tanto? Tá certo que na última vez dissera todas aquelas coisas, e palavra que
voa não volta, mas, pôxa!, depois de todo esse tempo ela devia saber que ele era mesmo
assim, inseguro, instável, infeliz, sobretudo infeliz, e que em noites
de luazona como aquela um sentimento estranho deixava-o meio
louco, meio homem, meio lobo, e que ele sempre corria pra ela, só e
sempre pra ela. Tão amoroso ficava... E eram noites inesquecíveis aquelas,
depois ele iria voltando ao normal, até que um dia de sua boca sairiam
outras palavras negras, em negras noites que agora preferia esquecer.
Bateu de novo: dois toques fortes, dois fracos e outro forte. Acendeu
um cigarro. Buscou a calma. Que diabo, nunca encostara a mão nela. Nem
um dedo! Apenas falava, e que mal podem fazer algumas
palavras ditas em momentos de fúria? Entram por um ouvido e saem
por outro. Não é preciso guarda-las para sempre, pois
trancadas viram úlceras, miasmas, lagos de ódios parados. Encostou novamente
o corpo na madeira morna, e pode senti-la do outro lado. A prata dos
olhos derreteu em suas veias; os pés nus de Irene no tapete branco galopavam
unicórnios alados sob as pálpebras transparentes, e logo sua respiração
estava ofegante, suas mãos urgentes. A taça do vinho tinto do amor embriagava
através dos segundos perdidos. Última súplica: -
Irene... o que você quiser... para sempre...
eu juro: - Para sempre... Nenhum
som. Nenhum movimento. Passos imóveis de adeus. Rudolph
escorregou a mão no bolso, tirou a chave apressada, girou na fechadura,
torceu a maçaneta, abriu a porta devagar. A luz estava acesa. - Irene?
Entrou sem fechar a porta, e não foi muito longe. Dois passos, não mais.
Irene saiu detrás da porta, silenciosa como a vingança, e cravou com
força a faca em suas costas. Quase sentiu-a
rasgando o tecido do paletó, da camisa, penetrando na pele, resvalando
numa costela, até encontrar a parte oca que abriga o coração. Surpreendeu-se
com a própria rapidez. Não houve grito, nem gemido. Apenas um silvo
de ar, um assovio banguela, escapou pelo corte da faca, chupando para
fora a vida de Rudolph. O corpo do homem desabou
sobre si mesmo, e no tapete branco, junto aos seus pés pequenos, o sangue
vermelho manchou uma lua minguante. Irene
segurava o cabo da faca, a lâmina partida. Sua cabeça rebobinava
continuamente a cena fatal. Fechou lentamente a porta. Não estava suja
de sangue. Achou todos os filmes ridículos. Tomou outro banho. Vestiu-se
com calma. A mala estava pronta. Apagou a luz da sala. Ao entrar no
táxi ainda viu o carro estacionado como um jazigo de lata. O
grande bimotor começou a sair do chão como um elefante cheio de gás.
Irene tinha pavor de avião. Olhou para fora e viu que a lua-cheia iluminava
as estradas do céu. Antes assim. Fosse lá pelo que fosse, pegou-se fazendo
o sinal-da-cruz. |