DISPOSIÇÃO DE ELEFANTE
Beto Muniz

 
 

Tenho uma disposição de elefante. Imagine cenas dum filme de aventuras (daqueles que passam na sessão da tarde), onde o elefante vai derrubando árvore após árvore utilizando sua extraordinária força. A cena traduz minha disposição crescente quando chego na PORTARIA UM da cidade universitária, a USP, aqui em São Paulo, e deixo-me contagiar pela visão dos atletas em final de tarde malhando, pedalando, correndo pela vias arborizadas do campus. Mas essa disposição é nova! Desde sempre cultivo essa vidinha sedentária. Linda e preguiçosamente sedentária. No meu currículo esportivo até consta umas tentativas bem sucedidas no atletismo, porém durou menos que um verão. Eu era adolescente e trinta quilos mais esbelto. Em alguma caixinha de recordações materna repousa uma medalha em latão dourado com a inscrição "Honra ao Mérito. Primeiro Lugar Categoria Salto em Distância - Gincana Escolar - 1979". Depois dessa glória, ou talvez durante esta solitária conquista, decidi que não nasci para suar e acalmei meus músculos. Nem futebol, que adoro assistir pela televisão, quis aprender. Aliás, meu jogo predileto é truco. O baralho é leve, o jogador fica sentado, bebendo e, fora o levantamento de copo, não exige esforço físico. Uma ou outra vez, dependendo do blefe ou da carta, se levanta para trucar. Não chega a suar. Garanto.

Mas não era sobre minhas predileções que estava escrevendo. Explicava sobre a disposição crescente que se apossa do meu espírito rebelde quando entro na cidade universitária e trafego em direção a avenida Escola Politécnica. Aqueles atletas se esforçando por mais um passo, por mais uma pedalada, mais alguns metros! Exaustos e aparentemente felizes, saudáveis até, contagiam o espírito rebelde e esportivo que habita meu corpo preguiçoso. Sim, meu espírito é incompatível com o corpo que habita e vive provocando estes plácidos músculos e tendões: "vamos lá! você agüenta um pique no lugar durante cinco minutos" ou então estimula: "Bravo! Dessa vez você conseguiu cinco flexões. Mas precisa fazer direito, vamos tentar não descansar o corpo no chão". E assim, de incentivo em incentivo, a cada três meses eu faço uma caminhada em torno do quarteirão, arrisco vinte braçadas na piscina, exagero com cinco minutos de polichinelo, abuso em dez flexões (duas sessões de cinco, ou três sessões de três). Ufa! Gente pedalando! Eu poderia comprar uma bicicleta, dessas de vinte marchas e suspensão traseira. Bem confortável para um iniciante. Isso, nada muito pesado ou forçado que não preciso suar pra ficar em forma... Mas estou me afastando novamente do assunto: essa disposição crescente que se apossa de mim ao entrar no campus da USP.

Pois então, já em frente ao portão da raia olímpica minha disposição está minguando. Aqueles gordinhos que correm de camisetas estão quase desabando, se derretem formando enormes manchas no tecido de malha. Pobres atletas rechonchudos, agonizam por alguns milímetros a menos na circunferência abdominal. É horrível ver um ser humano se degradar tanto em prol dum padrão de beleza estabelecido por alguém com a minha compleição. OK, OK!!! Quem me conhece pode dizer que só digo isso porque sou esbelto, oitenta e quatro quilos bem distribuídos pelos um metro e noventa, mas não é! Desculpe-me se sou belo, mas vamos supor que os sujeitos (sim são vários), estão se exercitando por questões mais nobres, estão correndo por necessidade, por prescrição médica, suando por qualidade de vida. A razão não se discute, o fato é que a visualização de atletas esgotados ao longo da alameda vai minguando minha disposição. Imagina se vou passar por esse tipo de situação! Minha camiseta empapada de suor, as feições distorcidas, as pernas trôpegas, a respiração sofrida, o ar queimando as vias respiratórias. Jamais! Deveria ser proibido tamanha poluição visual-olfativa em lugar tão belo, tão natureza, tão público! Quase chegando no PORTÃO DOIS, estou sem disposição alguma para correr, trotar ou simplesmente caminhar. Estou é cheio desse lugar natureba, dessa gente que malha, dessas pessoinhas arfantes, suadas. Cheio! Chega. Fecho os vidros, ligo o ar condicionado, acelero e saio pela portaria dois sem a mínima disposição para ser atleta. Nesse breve percurso a disposição de elefante foi só uma fase. Passou! Aquela possibilidade de comprar uma bicicleta? No primeiro semáforo, já fora da USP, também passou. Totalmente.

 
 

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