JUST MEMORIES
Nato Borges
O passado era um ponto qualquer na memória, formado por imagens que volta e meia surgiam em flashes, instantâneos de uma época que, na maior parte do tempo, ficava esquecida em algum canto cerebral mal resolv ido. Era assim, dormente, adormecido, quase esquecido.
No quase morava seu desespero. Quando as imagens surgiam assim, do nada e em momentos absolutamente inesperados era pego de surpresa por lembranças sem sentido, mas dolorosas. Talvez houvesse alguma relação com o que vivia nos últimos meses: uma situação provisoriamente definitiva. Provisória porque todos lhe diziam que tudo aquilo ia passar, era uma fase, um momento de inflexão em sua vida, que tomava um novo rumo.
Definitiva porque, no seu íntimo, não via aonde aquilo tudo ia levá-lo. A sensação de perda era cada vez mais freqüente, e a certeza de que não recuperaria a sanidade o acompanhava de modo indelével, constante, quase como uma sombra. Era em momentos assim que os flashes surgiam com força.
Páscoa. A avó fazia questão de reunir toda a família em torno da já tradicional bacalhoada. De bacalhau mesmo, muito pouco. Mas as batatas, acompanhadas da cebola e dos pimentões, guardavam o arom a e o sabor do que havia sido um dia um bacalhau, lá pelas águas da Noruega. O mais sensacional destas reuniões não era a comida, embora fosse aguardada com ânimo, mas a presença.
A sensação era de que aquela seria uma família eterna. Havia os tios, havia os primos e havia a imagem de que eram todos do mesmo sangue. Experiências, histórias, algumas brigas e a mesa cheia davam a avó uma ponta de orgulho, de sensação de dever cumprido. Tinha sido um longo caminho até ali e vê-los todos ali era a certeza de que sempre esteve no caminho certo.
Lendas não havia. Nenhuma das crianças tinha ilusões sobre coelhos ou ovos escondidos em surdina, em furtivas visitas na madrugada. Mas da entrega até o fim da noite, toda a casa ficava tomada pelo cheiro de chocolate, pelas comparações infantis a cerca de sabores, tamanhos e formas. Pareciam felizes, pareciam eternos.
Ainda se lembrava de quando perdeu a avó. Foi ali que começou a perder o senso do que era ou o que deveria ser sua família. Na verdade foi ali que começou a perder sua família. Não houve mais reuniões nem ovos. Não houve mais tios ou primos. Cada um tomou seu caminho, chegando ao que eram hoje sem qualquer constrangimento: completos desconhecidos, marcados por um rancor mal disfarçado que ninguém sabia aonde surgira, como crescera e de que jeito criara raízes.
Em momentos assim invariavelmente chorava. Não por saudade, ou não só por ela. Mas por uma dor que fincava-se no seu peito. No peito não, na alma. Não que acreditasse nela, mas se houvesse e fosse tangível, certamente havia de doer daquele jeito, com aquela força. Era das lembranças que vinha a sensação de partida, de que um porto seguro tinha sido deixado para trás e que o destino era desconhecido. Mais uma vez o provisório.
Tinha raiva quando se descobria em momentos assim. Ao público externo, parecia ter tudo para ser invejado. No fundo considerava medíocres os que o invejavam. Quer ia vê-los suportar a dor de acordarem sozinhos todas as manhãs, de dar boa noite às paredes todas as noites, de ter na parafernália eletroeletrônica seus melhores companheiros, seus grandes amigos. Não conseguiriam.
Ao mesmo tempo não se imaginava em outra vida. Suas dúvidas não diziam respeito aos caminhos escolhidos ou atitudes tomadas, mas aos resultados, estes sim, talvez mal calculados. Mas ia passar, era o que diziam. No fim, o saldo seria positivo. Problema era só não saber quando.
Aniversário. O de 15 anos foi o último da melhor fase de sua vida. Ali ainda os amigos, aqueles que seriam para a vida toda. Conheceram-se todos ainda crianças, seis, sete anos cada um. Cresceram fazendo da vizinhança seu país, dos quarteirões próximos seus domínios. Eram reis e como era bom ser rei.
Nos finais de semana saíam todos de bicicleta. Era quase uma gangue. Quase quinze delas cortando avenidas e ruas. Piadas, gritos e gargalhadas misturavam-se com bu zinas, freadas, xingamentos. Era perigoso sim, mas antes de qualquer coisa divertido. Não havia coisa igual ao caminho.
Isso mesmo. O caminho importava mais que o destino. Muitas vezes planejavam longas jornadas até algum ponto distante da cidade, um parque ou a casa de algum parente de um deles. Na chegada, água muitas vezes um banho de mangueira alguns minutos de conversa jogada fora e alguém sugeria iniciar a volta. Lá se iam todos.
Faziam planos de tornarem-se adultos juntos, fundavam empresas, compravam casas e planejavam grandes viagens. Pareciam felizes, pareciam eternos. A certeza começou a ruir com a morte do primeiro. Um tumor no cérebro chegou sem aviso e tirou deles a certeza da imortalidade. Alguns se mudaram, outros também morreram e, dos que sobraram, cada um seguiu seu caminho.
Coisa estranha aquela, constatar que antes da família havia perdido a inocência. Mais estranho era constatar que muita gente ainda mantinha laços que ele considerava perdidos havia anos, ou séculos, como parecia em alguns momentos. Tanta coisa e tanta gente tinha passado por sua vida. Muitas vezes se achava cansado, não queria mais coisas nem gentes.
Outros dias acordava com o sol no rosto e, mesmo sozinho, insistia em dar bom dia às paredes, às portas e aos armários de seu apartamento. Via de regra eram dias azuis, luminosos, que pareciam cheios de possibilidades quando vistos do alto dos vários andares, que compunham os vários prédios onde morava. Em momentos assim, saía de casa com a certeza de que era feliz, de que era eterno.
Mantinha-se assim por alguns dias, até que um novo flash o pegasse em cheio, centrifugando sua confiança e as certezas que construíra desde a manhã ensolarada. De novo mergulhado nas dúvidas de uma saudade sem motivo, voltava a divagar e construir teorias sobre a condição humana, mas especificamente a sua condição.
No fim das contas não se continha, afirmando aos ventos que a felicidade, mais que um estado passageiro, está invariavelmente condicionada ao passado, não importa o que, ou como, se vive hoje. No fim do dia concluía que não há o que esperar, que os estados provisórios são, de fato, definitivos na vida de quem escolheu viver, ao invés de se esconder sob os escombros de situações mal resolvidas ou disfarçadas.
Não só a felicidade, mas tudo era passado. A avó, os tios, os primos, os amigos, a inocência, os pais, as mulheres, os trabalhos, tudo. Tudo o que parecia felicidade, tudo o que parecia eterno. Sabia que os flashes voltariam como fantasmas e sabia que o futuro também passaria, até que ele mesmo, com um pouco de sorte, se tornasse um flash na memória de alguém. No fim, resumia tudo em apenas um pensamento:
- Imortal é o cacete!!!
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