PARA
SEMPRE É AGORA
Luís Valise
A sala de espera estava cheia de pacientes bem-humorados, nenhum preocupado com a demora em ser atendido. Sentada em sua mesa, na frente do sofá dos enfartados, Gisela trabalhava, ou fingia. Entre o tampo da escrivaninha e a parte frontal, fechada por uma chapa de madeira, havia um vão. E pelo vão podia-se ver suas pernas cruzadas, as coxas grossas dentro da saia curta. Queimadas de sol, bronze dourado com leve penugem loura, joelhos perfeitos, arredondados como maçanetas de banheiro de trem. Os pacientes deixavam-se ficar, dóceis, pondo à prova as coronárias maltratadas. Gisela sabia, e de vez em quando descruzava as pernas, dava uma remexida na cadeira, e tornava a cruza-las do outro lado. Nesse momento fazia-se um silêncio de páginas em branco. O telefone sobre sua mesa tocou, e Gisela moveu os lábios de marzipan: - Alô? Após breve pausa, olhou para ele: - Sr. Coqueiro, é sua vez. Victor Coqueiro levantou-se do sofá e dirigiu-se para a porta do consultório, ouvindo votos abafados de boa sorte dos que permaneceriam na espera, duplamente agradecidos. A sala do Dr. Algarraz era espaçosa e bem iluminada; paredes forradas de diplomas, e q uadros de arrabalde. Sobre a mesa, um porta-retratos mostrava uma jovem senhora e duas crianças sorridentes. Dr. Algarraz não sorria. Indicou a cadeira para Victor, e após os cumprimentos de praxe procurou ser didático: - Sr. Victor, as notícias não são boas, mas também não é o fim. O exame de cinecoronariografia mostrou entupimentos importantes, que poderiam ser solucionados com safenas e mamárias, mas infelizmente não é só isso. Seu coração está aumentado, e embora para isso também haja cirurgia, a válvula mitral está em péssimas condições. Qualquer dessas ocorrências poderia ser tratada isoladamente, mas essa rara combinação num só coração desaconselha a intervenção tríplice. Sendo assim, só nos resta uma saída: - um transplante. Um átimo. Um átimo de segundo, e nos vemos em flash-back. Nesse piscar de olhos, Victor reviu fatos e pessoas importantes em sua vida. Mãe, pai, irmãos, mulher, casamento, filhos, e... Jussara. Jussara, amor clandestino, quatro pra cinco anos, os melhores de sua vida. Bateu de frente: - Dr., seja sincero: - Quanto tempo me resta? O médico estava acostumado àquela pergunta. Todos deixam o mais importante para o fim, quando já não faz tanta diferença. A angústia estampada no olhar de Victor mostrava algo que não era medo. Se o médico soubesse, identificaria naquela expressão o início da corrida em busca do tempo perdido. Olhou a própria família no porta-retratos, e respondeu, com aquela cara de quem não corria atrás de nada: - Veja bem, Victor, não é tão simples. Tudo depende do que for feito. Sem transplante eu diria que você tem entre seis meses e um ano de vida. Nada de grandes emoções, pegando leve. Trepar, só por baixo (Victor achou que não era hora pra fazer piada, mas o outro falava sério). Se fizermos o transplante, vai depender da reação do teu organismo. Se não houver rejeição, você poderá levar uma vida quase normal. Esse quase fica por conta da medicação que você deverá to mar para sempre, e que deverá causar algum incômodo. De qualquer forma, meu conselho pra você, baseado na minha experiência, é esse: - Tome todas as providências que você achar necessário. Testamento, partilhas, fale a verdade para a família, e, importante, viva com amor no coração. Isso prolonga a vida. Ao sair, Victor passou como um zumbi pelo sofá dos enfartados, e por um momento Gisela era a Madre Teresa de Calcutá. No caminho de casa, pensava nas palavras do Dr. Algarraz. Sem transplante, uns nove meses. Com transplante, o imponderável. O que ele mais queria, de qualquer maneira, era Jussara. Entrou num bar. Sentou-se à mesa, afrouxou a gravata e pediu um uísque, que todos diziam fazer bem ao coração. Algumas doses trouxeram a decisão. Ao entrar em casa deu com a família na sala, sorrisos murchos, olhares expectantes. Quebrou o silêncio com uma sonora gargalhada, e todos também riram aliviados. Silvya foi quem perguntou primeiro: - E os exames, querido, estão bem? Tudo não passou de um grande susto, não foi? Estávamos preocupadíssimos com você. Victor debruçou-se sobre a esposa e beijou-a no rosto. Em seguida fez festinha na cabeça dos três filhos, e reparou como estavam crescidos. Quase homens. Sentou-se em sua poltrona preferida. Deu um longo suspiro, e desfez a curiosidade reinante: - Está tudo bem, agora. Finalmente, está tudo bem. Todos na família tinham os olhos brilhantes e felizes. Victor prosseguiu: - Tenho algumas veias, ou artérias, não sei, entupidas. Meu coração está dilatado, trabalhando com esforço. A válvula mitral está mais pra lá que pra cá. Preciso de um transplante. Os olhos de Silvya transbordaram de lágrimas, que caíram em gotas na blusa de seda azul-claro. Os filhos ficaram pálidos e imóveis. Ninguém conseguia dizer nada. Ele prosseguiu: - Não vou enfrentar o transplante. Operação de alto risco, com resultado imprevisível. Sem operar, eu tenho cerca de um ano de vida. E eu quer o viver esse ano amando intensamente, como se não fosse o último. Eu vou embora de casa. Eu amo outra mulher. Perdoe-me, Silvya. Claro que Silvya não perdoou: - Mas como?? Então eu passo a vida lavando tuas cuecas, agüentando teu bafo, para que agora, quando poderíamos viajar um pouco, conhecer o mundo, você me deixe por outra? Quem é a puta? Há quanto tempo você me trai com ela? Puta! Putana! Victor levantou e saiu com a roupa do corpo.
- Jussara, querida, preciso muito falar com você. Estou indo aí. Te amo. Ela, a namorada, a amante, a amada, esperava por ele vestindo um longo de seda preto, sandálias de finas tiras de couro unidas por círculos prateados, unhas dos pés cobertas de esmalte incolor, e agora seria toda sua, vinte e quatro horas por dia! Ao entrar pôs o dedo sobre os lábios pedindo silêncio, e contou tudo o que o médico dissera. Lembrou cada palavra do diagnóstico. Jussara ouvia e fumava , nervosa. Ao terminar o relato, Victor, amoroso, buscou um abraço. Jussara afastou-se, apagou o cigarro, e evitou seu olhar: - Victor, meu bem, estou muito contente em saber que tem saída. Afinal, transplante é coisa banal hoje em dia. Mas você tem que se preparar pra isso. Viver com moderação, com certos cuidados. E é por te querer bem que eu acho que devemos terminar. Não podemos seguir com essa loucura, esses sustos, esse medo de sermos descobertos. Principalmente você, querido, não pode seguir assim. Pelo nosso bem, porque eu também viverei melhor sabendo que você estará bem de saúde, é melhor você ficar com a Silvya. Você precisa de uma vida mais tranqüila. Já tivemos tudo de bom que poderíamos querer. Te acompanhei em viagens de trabalho pela Europa. Passamos dias inesquecíveis em Nova Iorque. Curtimos nosso amor secreto como ninguém antes, nem ninguém depois. Mas, agora, está na hora de acabar. Victor fez menção de levantar, começar a falar, mas ela colocou o dedo sobre seus lábios, e arrematou: - Eu conheci outra pessoa. Não quero falar sobre isso, seria doloroso para nós dois. Volte para a Silvya. Cuide do seu coração. - Mas eu já saí de casa! E falei pra Silvya que tinha você! Agora você me diz isso? Não tenho pra onde ir! Por favor, Jussara, vam... - Impossível, Victor. Nem tente. Entenda: estou apaixonada por outro. Hoje você pode ficar aqui. Vou sair, e só volto amanhã pela hora do almoço. Por favor, não esteja aqui. Tranque a porta e jogue a chave por debaixo da porta. Adeus. Jussara saiu levando consigo a parte boa do coração do Victor, que ficou encolhido no sofá, amargando a taquicardia. Vencido pelo cansaço e pela amargura, dormiu ali mesmo, de roupa e tudo. Pela manhã levantou com o corpo doído. O sol já ia alto. Ouvia o rumor surdo do trânsito lá fora. Abriu a janela. Do décimo-oitavo andar podia ver a silhueta dos morros distantes, meio encobertos pela névoa do outono. Lá embaixo a língua negra do asfalto saboreava carros coloridos. Pensou nas duas mulheres que até há bem pouco eram suas. A janela aberta convidou-o a um mergulho no desatino. Não hesitou. Pegou o celular no bolso e discou: - Alô? Gisela? Victor Coqueiro... |