EM PRETO E BRANCO
Beto Muniz

 
 

Em minhas lembranças navega uma lágrima eterna, ela desaparece por anos, quase penso que definha e, de repente, ressurge de entre a cerração mais viva que eu gostaria, mais imorredoura que meus remorsos. Ela paira sobre as águas da memória, flutua na divisa entre os rios rasos da adolescência e os mares profundos do homem que me tornei. Na margem de cá deste oceano recordo as águas doce da infância, e sinto o gosto salgado em minha boca se tornar cada dia mais amargo. Um processo sem volta, uma osmose que vai tomando conta dos meus lábios mesmo que eu nem sinta sede.

Camila tinha quinze anos quando se apaixonou pelo meu melhor amigo. Camila, de pele acobreada e olhos esverdeados era a mais linda da vila. Naquele fim de mundo onde, ainda hoje, todos são pardos, opacos, e embrutecidos de trabalhar a terra, uma menina de pele fina e cabelos castanhos claros se destacaria mesmo sendo feia. Entretanto, Camila era bela. Vinha de familia abastada, filha do prefeito, sua condição social a permitia cultivar uma beleza quase exagerada para aquele canto de mundo. Lírio entre pedras.

Henrique era filho do farmacêutico, também não tinha grandes contatos com a terra. Meu melhor amigo! E eu era bronco de corpo, de arar, de plantar, de colher, de ser pardo como os outros. Amizade nascida no banco da escola, única na vila, comum para todos, pardos e aguados. Aos dezesseis eu já cultivava, além do milho, certa paixão pela arte. Literatura e fotografia estavam ao meu alcance. Minha musa era Camila. Uma admiração calada, sofrida, necessária. Paixão de fotos disfarçadas, desfocadas pelo flagrante anônimo, sempre o anonimato. Sem que ninguém, nem mesmo Henrique soubesse, reservava meus poemas para ela, Camila. Meu amigo tinha outro bem querer, outra menina para gostar. Mariana. Tal qual na quadrilha de Drummond, Camila amava Henrique que amava Mariana que amava a mim que amava Camila e escondia de todo mundo. Um dia falei da minha paixão e, por não saber amar ainda, fiz acordo pagão com meu melhor amigo. Camila teria Henrique que teria Mariana que teria a mim que teria Camila e se perderia para sempre nadando através das águas doces até alcançar mares profundos e salgados .

Henrique teve Camila. Desta posse ficaram algumas poses em branco e preto. A maioria delas mostrando mais a bunda branca do meu amigo que o corpo nu acobreado/cinza de menina musa, muito mais cinza pela penumbra. Diante da ameaça de visitação pública ao acervo de poses, o poeta conseguiu a nudez de sua musa e experimentou pela primeira vez o gosto salgado dessa lágrima que insiste em ressuscitar eternamente na minha lembrança. Camila chorava e eu gozava enquanto do outro lado da cidade meu melhor amigo entregava outras poses, também em branco e preto. Nelas meu traseiro pardo acinzentado cobria as ancas de Mariana. Henrique me disse que ela não chorou. Nem uma lágrima.

 
 

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