COMO O FOGO
Anna Carolina N. Fagundes
Para sempre é uma expressão
que meu estimado bisavô,
Henry Daltrey, não conseguia compreender. Como era
possível alguma coisa durar eternamente? A vida, como
os dormentes de trem (ele era engenheiro, veio ao
Brasil para assentar a linha de trem que corta hoje o
interior de São Paulo), se desgastava e eventualmente
precisav a ser trocado. Nada nesse mundo durava para
sempre. Era contra a natureza das coisas, a eternidade.
No entanto, foi o Brasil que lhe ensinou o sentido de
imortalidade. OK, não exatamente o país, mas uma
brasileira, filha de espanhol com português, a mulher
mais linda de Rio Claro (dizem os envolvidos no
assunto) Eleonora Nunes. Minha bisavó.
Diziam que Eleonora nunca se casaria, por causa de uma
maldição posta sobre sua cabeça morena no instante em
que ela foi concebida. Ela, filha do segundo casamento
de um espanhol muito rico, era invejada pela família
que viera antes dela três filhos homens que, não por
falta de amor mas por falta de traquejo e psicologia,
eram postos na vida dura como bois na canga. Sem uma
colher de chá do pai rico, tinham que colher o fruto do
próprio trabalho. E eles, que achavam que tinham
direito ao dinheiro do velho espanhol, reclamavam e
reclamavam e reclamavam, sem nada faz er.
Pois disseram os três varões que, fosse o que fosse que
nascesse da barriga da portuguesa Cecília homem,
mulher ou mula, como diziam estaria de antemão
condenado a viver na canga também. Quando nasceu uma
menina, os meio-irmãos disseram que ela seria
eternamente um peso-morto para o espanhol sem coração
que não mimava os filhos mais velhos.
Quando Henry Daltrey veio para Rio Claro, parecia que a
maldição tinha mesmo dado efeito. Eleonora era de saúde
frágil, um bibelozinho de porcelana que não podia tomar
nem sereno, nem vento, nem sol forte. O velho espanhol
(meu trisavô) adorava a filha, mas não podia com sua
fragilidade que afastava pretendentes. E dizia que não
tinha quem pudesse com uma maldição que estava para
completar vinte e cinco anos quem é que ia casar com
uma mulher daquelas? O velho espanhol parecia mesmo
fadado a cuidar da filha pelo resto de seus dias, tal
como seus filhos invejosos q ueriam.
Pois um dia apareceu o tal inglês engenheiro da linha
férrea, vermelho como um pimentão (pois o sol do
interior paulista cozinha até asfalto, quanto mais pele
branca de galego acostumado com neve!), de olho mais
azul do que o céu de primavera e cabelo cor de trigo,
com jeito desastrado e português todo torto, na casa do
velho espanhol. Tinha ido pedir informações, e tanto
falou que acabou sendo convidado para tomar um lanche
pelo meu trisavô, que era mesmo um sujeito extremamente
cordial.
E nisso ele encontrou Eleonora na sala, bordando uma
toalha. Dizem que quando os dois se viram frente a
frente, só faltou sair faísca. Aquela moreninha de ar
de porcelana Limoges, olho redondo e sorriso de Mona
Lisa acorrentou os pés do engenheiro inglês para sempre
no chão paulista. Porque ele decidira (como todo
inglês, sem perguntar se poderia) que de Rio Claro não
saía sem levar Eleonora junto. E se ela quisesse ficar
na terra dela, tudo bem: ele ficava também, e que
danasse Sua Majestade e sua família lá em Liverpool.
Os três varões tomaram um susto tremendo quando viram,
certa noite no cinema da cidade, a meia-irmã que não
podia tomar nem sereno, nem vento, andando de braço
dado com um sujeito de dois metros de altura, magro
como um caniço de pesca e de cabelo claro, num bem
cortado terno claro. Era um pão, diziam as
fofoqueiras de plantão (e toda cidade tem uma rede
delas), um bom partido e como Eleonora parecia
remoçada, viva!
Pois os três varões (irônico pensar que um deles virou
padre!), decididos em seu ciúme a estragar o namoro e a
vida da meia-irmã, armaram para que Henry Daltrey
apanhasse feio ao voltar da linha férrea numa tarde
quente de novembro. Quem socorreu o inglês foi um
funcionário da e stação de Rio Claro, chamado Martino.
Ele levou o engenheiro para o hospital, já meio que
encomendando o corpo depois da surra que o galego
tomara, de paus e pedras e chutes, que jeito ele tinha
de sobreviver?
Fosse outro, tinha morrido sem nem uma prece de extrema-
unção. Pois dizem os que vieram depois dele que o amor
que ele sentia pela menina de pele de porcelana fez com
que, de teimosia, ele não abandonasse a carcaça made
in England em Rio Claro. Se recuperou e voltou a
cortejar Eleonora, agora com ar de cavaleiro em
armadura prateada afinal, ele tinha sobrevivido a uma
bela de uma surra, simplesmente por amor a ela! As
fofoqueiras da cidade alçaram o engenheiro ao posto de
herói romântico da cidade.
Como vocês estão imaginando, os dois se casaram ainda
bem, senão eu não estava aqui para narrar a história.
Vivos, infelizmente, os dois não estão mais. Nem eles,
nem os três varões (um que virou padre, outro que foi
para o Exército e um terceiro que nunca fez nada que
prestasse na vida). Do amor de Henry e Eleonora, no
entanto, restou um fogo imortal, que se propagou por
três gerações até chegar até mim. De escrever
essa
história, eu sinto o calor das chamas, confundido com o
ardor do sol do interior paulista.
Meu bisavô não acreditava que as coisas poderiam durar
eternamente. Não sabia, até então, o que era amor
verdadeiro que ultrapassa as barreiras do físico para
se tornar uma luz-guia para os que vêm depois de nós.
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