DIÁLOGO
Ana Peluso
Ele
No que você está pensando?
Ela Na vida. Nessa coisa louca que não mede espaço-tempo
e acontece de mil formas, em mil outros tempos, todos diferentes e simultâneos;
quem sabe? Ou seja, acontece, porquê não teria como não
acontecer.
Ele Você se apaixonar por mim?
Ela Nosso encontro... É como eu sinto. Eu encontrei você
e você a mim; um pouco depois...
Ele No mesmo momento. Lembra que eu disse que entalou na garganta?
Ela No peito.
Ele O quê?
Ela Entalou no peito. Vc disse: "Estou com tudo isso que aconteceu
entalado no meu peito até agora, e você vem me dizer que é
uma droga?" Lembro. Eu me lembro do que você disse. Mas nada aconteceu
em seguida e poderia ser um distanciamento natural entre nós ou uma aproximação
vagarosa. Afinal, nunca achei que você gostaria de trocar idéia
com uma enfermeira...
Ele Eu sou médico. Com quem você queria que eu trocasse
idéia?
Ela Mas eu sou enfermeira-veterinária.
Ele É tudo vida, minha cara. É tudo vida.
Ela Nunca salvei vidas; nem a dos cães. Apenas ajudava a segurar
os bichos e quando morriam, consolava seus donos. E só.
Ele Eu salvei muitas vidas. Mas deixei de salvar algumas. Não
exatamente por minha falta de ação, mas pela distância...
Ela Entre você e a "vida"?
Ele É. Entre eu e a vida.
Ela Você já pensou que talvez gaste muito tempo redigindo
teses, diagnósticos e receitas?
Ele Faz parte. Você não redige o prontuário dos animais;
o atestado de óbito? Então.
Ela É, acabo fazendo de tudo um pouco naquele moquifo.
(silêncio)
Ela Eu jamais seria escritora, sabe?
(silêncio)
Ela Imagina o trabalho de descrever em mil páginas o que leva,
às vezes, segundo algum para acontecer?
Ele Como nosso encontro?
Ela Não.
Ele Como o quê, então?
Ela Não sei bem, mas acho que, por exemplo: esse momento poderia
nunca existir. Ninguém perceberia, compreende? Talvez nem eu e você.
Ele Não brinque com metáforas! São caminhos deliciosos,
mas são perigosos...
Ela Você tem medo do tempo não existir!! Eu sei!!!
(silêncio)
Ela Pois tranquilize-se. Eu sinto uma espécie de... Não
exatamente medo, mas tenho a sensação, muitas vezes, que ele não
exista, realmente.
Ele E faz diferença?
Ela O quê?
Ele Ele existir: o tempo...
(silêncio)
Ela Desde que o escritor-escritora continue escrevendo, não.
Ele Não use metáforas! Já te pedi isso.
Ela Eu nunca vi perigo no que transcende!
Ele Você não pode saber o que é transcendência!
Acorda!!
Ela Ah, não? Então me diz o que você acha do semblante
dela?
Ele Quem?
Ela A mulher ali, ó. Provavelmente é uma escritora: força
a vista e batuca pelo teclado com cara de "final dos tempos". Vai
que ela resolve parar???
Ele Deixa de besteira! Ela sempre esteve ali, sempre batucou nesse maldito
teclado. Fazia isso no dia do nosso encontro, inclusive.
Ela Paixão.
Ele Mas não era encontro?
Ela Diante do impossível, que seria redigir minha própria
história, cedo às suas sugestões.
(silêncio - ele sorri)
Ela Não sei. A "transcendência" dela ainda não
me deixa ver a página seguinte. Ela tá meio tesa, dura... ihhh,
parece que vai levantar... tá terminando de escrever quase em pé...
Ele Vai ver ela tá com vontade de fazer xixi. Relaxa...
Ela É, mas vai que não? Vai que ela odiou o texto e tá
afins de cair fora?
(silêncio)
Ela - O que aconteceria com nós dois?
(silêncio)
Ele A gente pode torcer para ela guardar nossa história naquela
pasta que ela chama de "continuar"... e sei lá, dar sorte dela
lembrar.
Ela Mas e se em vez da nossa história, ela estiver escrevendo
outra.
(Ambos olham em volta. Um cachorro toma água no canto da sala.)
Ele Se ele dormir e ela levantar, era a dele!
Ela Se ela levantar e ele não dormir, tem mais gente escrevendo
aqui em volta...
Ele Tá vendo, vc é maluca... A gente deixa, você
vai... O que foi? Olha pra mim! Hey!
(Ele se vira para descobrir o que a deixou de olhar fixo.
Vê o cachorro terminando de sumir. Olha pra ela que começa a ficar
transparente. Procura a pretensa escritora que batuca no teclado dia e noite,
desde que ele se lembra de si. Ela não está lá.
Mas ele está.
Pontua o final, assim que ela desaparece à sua frente.)
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