PROFUNDAMENTE
Raymundo Silveira
Profundamente surpreendido pela escolha do
tema quinzenal que reinaugura mais uma fase dos Anjos de Prata, retomo
imediatamente a tarefa de escrever o meu texto como sempre costumava fazer desde
quando fui aceito como membro deste grupo.
Profundamente também feliz estou por causa de uma feliz (e incrível) coincidência:
ao tomar conhecimento do tema encontrava-me precisamente lendo uma das duas mil
e novecentas páginas da minha Bíblia que são as memórias de Pedro
Nava onde ele transcreve este poema:
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Profundamente também comovido, pois este advérbio para mim é praticamente sinônimo
de Bandeira, o segundo poeta da minha predileção em língua portuguesa
– o primeiro é Fernando Pessoa.
Profundamente assustado por recear não ser capaz de traduzir em palavras a emoção
que sinto quando leio qualquer um dos seus poemas; profundamente consciente das
minhas limitações quanto a ser capaz de tecer comentários acerca de poetas e
de poesias; profundamente envergonhado e me sentindo profundamente audacioso peço,
de antemão, perdão aos experts em poesia, de um modo geral e,
particularmente, em Bandeira.
Uma das características que mais admiro neste homem é a coragem com que
desprezou a retórica dos seus predecessores, passando a utilizar uma linguagem
simples, amena, coloquial a fim de tratar de temas do cotidiano sem qualquer
laivo de afetação. Neste aspecto, Bandeira estaria para a poesia do mesmo modo
como Mário e Oswald de Andrade estão para a prosa. Um
exemplo típico desta inovação, ao mesmo tempo ousada e feliz é a ironia fina
com que ele trata aqueles autores que o tentavam ridicularizar por causa disto.
Nestas duas estrofes do seu poema Sapos; parecem estar contidas doses
substanciais de humor e de sarcasmo como jamais alguém ousou fazer antes dele.
E, para quem escreve este texto, toda inovação bem sucedida é apanágio dos
homens geniais:
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos!
Outros destaques impressionantes são o seu caráter e a simplicidade e concisão
com que exprimiu a sua preocupação com o social. Se para o gênio de Castro
Alves foram necessárias nada menos do que trezentas e vinte e cinco linhas para
tentar arrancar do coração dos homens a indiferença quanto ao destino trágico
da raça negra, Manuel Bandeira logrou fazer o mesmo em sete curtíssimos
versos, como neste poemeto de apenas duas estrofes:
Irene no céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Haveria muito mais o que dizer sobre este homem imortal, mas apenas estas duas
características da sua poética são suficientes para dizer o quanto o admiro.
Profundamente!.
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