UM UÍSQUE DEPOIS
Luís Valise

 
 
Olhava o fundo do copo através do último gole de uísque que repousava imóvel. Hesitou entre pedir outra dose ou pedir a conta. Levou o copo aos lábios e sentiu o fogo descendo pela garganta irritada pelo cigarro e pelo álcool.

- Seu Neném, a conta!

Seu Neném era o dono do pequeno bar da esquina próxima à sua casa. Era conhecido por lá. Muitos porres, sempre uísque, entre bebedores de cerveja. Fingiu não notar os olhares de espanto, pois geralmente só pedia a conta quando não mais conseguia falar claramente. Mas hoje, não. As palavras saíram perfeitamente inteligíveis:

- Seu Neném, a conta!

Estava no nível que todos os bebedores buscam, e no qual poucos conseguem se manter: o da lucidez irresponsável. Sabia exatamente o que não devia fazer, e também não via a hora de faze-lo. O dono do bar trouxe a conta a contragosto, já que hoje não poderia cobrar as doses a mais. Justificava-se de si para consigo: - Esse é o preço por aturar bêbados!

Mário meteu o troco no bolso sem conferir, acostumado às facadas do outro, e saiu com o passo quase certeiro. Abriu a porta do carro velho, enfiou a chave no contato quase de primeira, e saiu todo cuidadoso, com sua lúcida irresponsabilidade. No caminho da casa dela ia desfiando argumentos.  Tudo dependendo de quem atendesse à porta. Se fosse ela:

- Faça a mala, meu amor, vamos embora! Ou, se fosse ele:

- Eu vim buscar a Martine, e você não tem peito pra me impedir!

Olhou o relógio, achou que ainda era cedo, resolveu reforçar os argumentos. Encostou o carro na porta de um bar, com todo o cuidado pra não raspar as rodas na guia, o que não o impediu de encostar de leve no carro da frente. De dentro do bar saiu um brutamontes que veio conferir o párachoques. Não estava amassado, e mesmo assim o tipo deu uma encarada no Mário, que tentou sorrir amistoso e caprichou nos passos até entrar no boteco. À sua entrada fez-se  silêncio. Conseguiu um lugar no balcão entre os bebedores de cerveja, e ordenou um uísque com quatro pedras de gelo. Não pediu pela marca, nem olhou a que foi servida. Esperou que o gelo derretesse o suficiente para ser coberto pela bebida. Percebeu que a conversa dentro do bar voltara ao normal. Acendeu um cigarro, deu um gole, uma tragada, outro gole e outra tragada, conferiu as horas, deu três tragadas e nenhum gole. Ainda não era hora. Os olhos de Martine eram de um castanho maduro, lembravam a cor do uísque. Ou era o uísque que o fazia lembrar seus olhos? Era por isso que nunca tomava outra bebida. De repente notou que ainda estava usando a aliança. Coisa ridícula! Como ir buscar a mulher amada levando no dedo a vida da outra? Tirou a aliança, foi até a porta do bar, ergueu o braço, mas arrependeu-se justo antes de atira-la longe. Teresa não merecia isso. Bastava a separação, o cuidar das crianças, a pensão mirrada. Guardou a aliança no bolso, voltou pro balcão. Acendeu outro cigarro e voltou a encontrar Martine dentro do copo. Pagou e saiu cuidadosamente, evitando o carro da frente.

Mário conferiu o endereço. Era a primeira vez que via a casa dela. Passou bem devagar, observando o sobrado com um jardim na frente, a luz acesa no andar de cima. Deu uma volta no quarteirão e estacionou algumas casas adiante. Veio andando rente ao muro, parou defronte ao portão. Martine estava a apenas alguns metros, talvez só de camisola, talvez nem isso. Encostou na grade do portão, procurando pela campainha, quando um enorme cachorro preto saltou em sua direção, latindo desvairadamente! Um cachorro! Martine nunca dissera que tinha um cachorro! Os latidos cortavam o silêncio da noite como um chicote! Mário deu um pulo para trás, se afastando do portão. Seu coração batia doidamente, que puta susto! E já se preparava para voltar para o carro quando um vulto surgiu na sombra da árvore:

- Parado! Não se mexe! O vigia da rua, vestindo uma japona azul marinho grande demais para ele, um gorro de tricô na cabeça, segurava um revólver com as duas mãos, e falava sem soltar o toco de cigarro da boca:

- Mão na cabeça, vagabundo! Mário não gostou do "vagabundo":

- Vagabundo,não! Vê lá como fala! Lembrou da aliança solta no bolso, resolveu coloca-la novamente. Não teve tempo.

O que faz com que, numa hora dessas, um homem tenha pensamentos tão inúteis? Que diferença poderia fazer uma aliança no dedo naquelas circunstâncias? O fato é que ao colocar a mão no bolso, Mário, que tinha o peito cheio de amor, despertou o medo que o outro trazia no peito, e foi um tiro só, bem no meio do rosto.

A rua rapidamente encheu de gente. O vigia ainda estava de arma na mão, pernas bambas, gaguejando palavras incompreensíveis. O marido de Martine levou-o para dentro, deu água com açúcar, tratou de acalmá-lo. Chamou a polícia.

Martine entrou em casa branca, muito branca mesmo, a boca aberta buscando ar, um cambaleio, ameaçou um desmaio, o marido amparou, levando-a para a sala, enquanto ela repetia mecanicamente:

- Por quê ele fez isso? Por quê ele fez isso? E o marido, sem saber a quem ela se referia:

- Não culpe o coitado, que fez muito bem em ter atirado. Sabe-se lá o que o outro queria roubar daqui...

Levantou-se, pegou uma garrafa de uísque, serviu-se de um tanto, e ofereceu:

- Quer um gole?

Martine fechou os olhos.
 
 

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