PROFUNDAMENTE
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
"De profundis clamavi ad te, Domine". Vulgata, Salmos 129.1
Profundamente. Foi assim que eu dormi dominado pelo cansaço e pela tensão
constante dos anos de fuga. E foi quando eles conseguiram finalmente por as mãos
em mim. Não opus resistência. Eu estava no limite das minhas forças, sem arma
e sem grana. Ao redor dos meus olhos, enormes marcas escuras que os óculos de
sol disfarçavam; a minha barba me assemelhava aos inconfidentes.
Precisavam de alguém para dar o exemplo. Eu era a pessoa mais indicada para os
seus infames propósitos. Tudo porque fingi erudição citando uma frase de um
livro que eu li:
"Todo poder é ridículo, toda autoridade é cômica"
A carapuça serviu a muitos. Puseram minha cabeça a prêmio. Caí na
clandestinidade.
Quando o sono me derrotou àquela madrugada, eu já sabia dos detalhes da traição.
Tantos anos preocupado em não deixar pistas, em improvisar esconderijos, em
trocar seguidamente de identidade, para ser entregue de mão beijada por quem
jurou me amar!
Pulsos atados, deixo-me conduzir como um cordeiro no meio da alcatéia. Os lobos
se divertirão em por em práticas suas modernas técnicas de tortura, mas se
irritarão ao me ver rindo na cara deles.
Eu já estou morto, canalhas!
Eles não percebem, ela não sabia, mas eu sei disso. Não há nada que possam
arrancar de mim. Podem me usar como quiserem. Vão cansar logo.
Por mais rasa que seja a cova em que me atirarem depois, creiam, mais profundo
será o meu desprezo por vós, algozes subalternos, lambe-botas miseráveis .
Cuspiria em vossas fuças se pudesse!
E o que mais posso, agora, é dormir profundamente. Sem sobressaltos, pesadelos,
inquietações.
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