UM PROFUNDO NONSENSE GESTO DE AMOR
Ana Peluso

 

Tal como num filme, assistia minha vida passar à minha frente. Os vários e eternos amores, seus sorrisos e um pouco das qualidades e defeitos de cada um; tudo dentro de mim como coisa para sempre, lembrança eterna, uma semelhança enorme com tudo o que existe no mundo e é mais grandioso e efêmero ao mesmo tempo, fazendo com que tudo tivesse um mesmo valor incondicional, ali, naquele momento em que eu lembrava do sorriso de cada um deles.

A faixa do cd mudou, e notei que com ela também foram meus pensamentos junto com outras imagens, aventuras, gestos, descampados, nuances do passado. Desembesto a lembrar de tudo e de todos, num leque impreciso entre tempo e espaço. A única coisa verdadeiramente real agora é a existência de cada um deles na minha vida, dessa forma que é só minha, inexistente e pulsante ao mesmo tempo, platonicamente errante, e percebo que amei todos eles. Cada um de uma forma e cada forma de uma maneira singular, impressa em mim, fato que torna impossível excluir qualquer um da minha vida, por um raro instante que seja. Todos sempre farão parte da minha memória afetiva como peças de quebra-cabeça espalhadas na minha mente com seus desenhos e desencaixes.

Agora noto que tudo é rapidez e que talvez eu não volte a vê-los, e que de repente isso não importa tanto quanto importaria se todos eles fossem algo mais do que eu, e não apenas parte dessa minha memória incompleta, afinal de contas.

Pego a caixa de fotografias e a entorno dentro da lata de lixo, na área de serviço. O bom seria poder despejar seu conteúdo janela abaixo.
Mas ainda penso que a discrição e a paciência nesses momentos contam pontos; para mim.

Num suspiro profundo, me abaixo e pego um retrato que jaz ali sobre o tapete. Justamente um rosto desconhecido. Por mais que eu tente o contrário, não me lembro quem é. Não reconheço o rosto na foto. Alterno frente e verso da foto na tentativa de identificar algo que me lembre alguém: um "convidado", um “apresentado”, um “amigo do amigo de fulano(a)”. Nada. Nem uma data, nome, referência, carimbo. Olho para o rosto desconhecido. Flerto com ele. É indecentemente lindo. Um erguer de canto de boca enunciava um sorriso. Correspondo. E me pergunto se mportava quem era ele, afinal? O fato de ele estar ali em forma de imagem que deveria estar no lixo e não estava já dizia algo, e de repente, sem quase me dar conta, beijo a fotografia.

Olho para os lados em busca de testemunhas. A mesma solidão de sempre é minha única companhia; reflexo meu no vidro da sala.
Ainda assim, abro a bolsa com cuidado e coloco a foto lá, na carteira - como se fosse alguém importante; como se tivesse sido, como segredo.

Sorrio, enquanto uma dúvida absoluta toma conta de mim; — quem poderá saber?

 

 

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