O
PROBLEMA DAS ASAS
Umberto Krenak
A vida na fazenda era sempre a mesma coisa: trabalho, trabalho, trabalho, comida, trabalho, dormir, acordar, trabalho... Rosilho era apenas um burrico mas percebia pela rotina dos mais velhos que o futuro não lhe reservava muito mais.
Um dia, enquanto puxava a carroça carregada de cana, da capineira para a moenda, avistou pequeno pássaro no galho de um ipê. Era um filhote. Podia perceber pela falta de firmeza que identificava nas delicadas pernas. A avezinha, ainda empoleirada, testava sua envergadura, ensaiando o vôo. Por fim, tomada de coragem, saltou desajeitada, bateu as asas com força, mas, em vez de alçar-se, o máximo que conseguiu foi planar e pousar no solo, caindo justo no trajeto de Rosilho que, por pouco, não a esmagou com suas patas.
Rosilho queria ajudá-la, mas não pôde. Além de ser muito pequena para que a amparasse, havia o trabalho. - Êia, Rosilho -, gritava o Seu Nenê carreteiro.
O burrico, então, prosseguiu no seu caminho, devagar, olhando para trás. Torcia para que a mamãe-pássaro aparecesse logo em socorro do pequeno. O que assistiu, no entanto, foi uma cena horrível: um gavião desceu do céu como uma flecha e, com precisão milimétrica, arrancou a avezinha do chão. O passarinho soltou um pio, apenas um pio, fino e trêmulo, de pavor.
Rosilho ficou muito impressionado e caminhou ainda mais devagar. Por esse motivo, levou umas chicotadas leves do Seu Nenê.
O resto do dia transcorreu sem sobressaltos.
No fim da tarde, no gramado próximo ao curral, onde a tropa se reunia para prosear, um Rosilho revoltado contava o episódio, como o gavião desceu e agarrou o pequeno filhote, dizia que gostaria de ter acertado um coice no gavião, mas estava trabalhando e...
- Isto é a vida, meu filho! - argumentou Cambaia, uma velha mula manca que durante toda a sua vida não fez senão puxar carroça e charrete.
- Como a vida, Cambaia?
- Você ainda é novo, Rosilho. Acaba de ser amansado. Mas é assim. Há fortes e fracos. Os fortes mandam e os fracos, ah, os fracos, estes obedecem.
- Mas o gavião é mau, Cambaia - retrucou Rosilho.
- Ele não é mau. É da natureza dele comer filhotes de outros pássaros, bem como é da nossa natureza comer capim e trabalhar para o homem.
- Mas não é justo. Que Deus é este que permite tanta injustiça?
A velha mula deu-lhe um coice leve na boca:
- Não blasfeme contra Deus, Rosilho! É assim, e ponto final.
Mas Rosilho não podia aceitar aquilo, não podia! A vida na fazenda era muito desigual: Tavico, o cavalo, conhecia a cidade como as linhas do casco, saía quase todos os dias a passear com o Seu Jorge; Manina, a égua, também ia à cidade, e se não saía tanto agora era por ser poupada para cuidar de Bitoca, sua potra recém-nascida. Mesmo cambaia, velha como estava, levava o leite tirado de manhã, na carroça, até a cooperativa, atravessando outras fazendas, vendo coisas diferentes. Só a ele estava reservado buscar cana e camerun para ração. Todos os dias! Deveria haver um rodízio. Trabalho e trabalho, já estava cansado! Desejou ter asas como o gavião. Se tivesse, ninguém o escorraçaria, seria livre para viajar, passear, conhecer muitos lugares. Já tinha ido à cidade uma vez, quando Cambaia ficou descadeirada. Mas sabia que havia muitos outros lugares lindos, pradarias cheias de grama tenra, via isto nas capas das revistas bonitas que os parentes traziam para o Seu Jorge.
Mesmo inconformado, continuou Rosilho em sua rotina. Nas reuniões da tropa, não se manifestava. Cambaia jurava que ele, já de natureza triste, estava ainda mais triste.
Um dia, após a última viagem de cana, banho tomado, passando próximo à casa da fazenda, Rosilho ouviu um estampido. Ele apertou o passo, chegando a tempo de ver Seu Jorge, o patrão, com uma coisa nas mãos, apontando para o céu. A coisa era comprida, feita de madeira e ferro.
Logo em seguida, o velho se abaixou e apanhou algo no chão:
- Te peguei, disgraçado. Vai roubar os pintim agora é no inferno.
Nas mãos do Seu Jorge, o corpo do gavião, mole feito um trapo. Com um movimento bruto, o velho lançou-o longe, quase acertando as orelhas de Rosilho, que abaixou-se um pouco para evitar ser alvejado.
O corpo do pássaro caiu perto do tronco de um grande jatobá, que se erguia imponente perto do riacho onde a tropa era lavada no fim de tarde.Rosilho foi até lá, aproximou-se do corpo e, para certificar-se da morte, rolou-o com a pata. Não encontrou sinal de vida. Com certeza, estava morto! Já tinha visto outros mortos: o burro Chico; Marola, a vaca e mesmo o pai do Seu Jorge, Véi Silvino.
Rosilho ficou assustado, mas sentiu-se vingado. E se ele soubesse usar aquilo que o Seu Jorge segurava? Então seria forte, mais forte até do que o Seu Jorge.
No outro dia, bem cedinho, Rosilho seguiu até o pé de jatobá onde estava o corpo do gavião. O que encontrou foi o cadáver coberto de formigas. - As formigas-, pensou, - não são fortes, mas espertas-. E continuou: “O seu Jorge está velho. Se eu desse um coice nele, ele morreria. Ele só é forte porque é esperto e sabe usar aquela coisa que matou o gavião. A força dele é aquilo!”
Ao se reunir à noitinha com a tropa, menos triste do que de costume, o burrinho contou-lhes o ocorrido, ocasião que Cambaia não perdeu:
- Viu, Rosilho, sempre há um mais forte. E o mais forte de todos é o homem.
- Mas, Cambaia, por que uns são sempre indefesos e fracos como os pintinhos?
- É a natureza, Rosilho - respondeu uma Cambaia mal-humorada.
- Eu queria ser um homem, isto sim!
- Não diga bobagem, menino. Isto é contra as leis de Deus. Deus nos fez desse jeito e temos que nos conformar em ser assim. Só deste modo iremos para o céu, onde teremos pastagens verdejantes e não precisaremos trabalhar. A vida é prisão, mas depois da morte, ah – suspirou – depois da morte, é a libertação.
Rosilho teve vontade de contradizê-la, mas ficou calado em respeito à idade da mula. Fingiu aceitar e baixou a cabeça.
Um certo dia, enquanto carreava capim, pensando na vida, chegou à conclusão de que não bastava ter asas. Era preciso ter força! Desejava saber mais sobre aquela coisa com que o Seu Jorge matou o gavião, aquela coisa que lhe dava poder. Cambaia disse que era uma arma. Sim, ele queria saber mais sobre a arma! No dia seguinte à morte do gavião, sempre atento, vira o velho matar duas perdizes e seguira-o à distância. Ele guardara a arma no paiol. Estava resolvido: Naquele mesmo dia, à tardinha, iria lá conhecê-la melhor.
O sol já despencava, quando Rosilho dirigiu-se para o antigo paiol de adobe. Sabia girar a taramela. Lá dentro estava escuro, mas ele podia ver a espingarda pendurada num cravo, que fazia as vezes de suporte, no fundo do aposento. Foi até ela e, usando os beiços e os dentes, conseguiu retirá-la. Saiu.
Ouvindo barulho e pensando que fôsse algum ladrão, Seu Jorge veio verificar. Chegou ainda a tempo de ver a silhueta do burrico com a espingarda na boca.
- Burro safado, larga isso! - gritou.
Descoberto, Rosilho acelerou o trote. E o Seu Jorge foi atrás com um porrete na mão. Rosilho disparou, estava bem adiante, mas havia a cancela e ele nunca tinha conseguido abri-la. Focinhou, tentou com as orelhas, com o cabo da espingarda: nada!
Pouco depois, chegou o velho:
- Disgraça, ocê vai ver - e foi logo descendo paulada no lombo de Rosilho.
Assustado, Rosilho deixou cair a espingarda. Gritou, rosnou, rinchou, ameaçou com os dentes, tentou morder o Seu Jorge, mirou um coice. Mas o velho era o souza; era forçudo e sabia evitar as patadas. Depois de cada pancada que ganhava, vinha outra mais forte. O burro, então, abaixou-se e abocanhou a arma novamente. Tentou usá-la, mas não sabia como. Mordeu o cabo de madeira, a parte de metal, balançou-a, soprou, mas tudo resultou inútil. Rosilho estava se sentindo fraco, os quartos bambos, as pernas dormentes. Percebeu o corpo oscilando no espaço. Caiu. Seu Jorge, no entanto, continuou, possesso. Arrancou-lhe a espingarda da boca e deu-lhe três coronhadas na testa. Por fim, chutou-lhe o pescoço violentamente. Mas agora Rosilho já não sentia dor; com a visão turva, o pátio gramado estendia-se embaçado a perder de vista, a pilha de mourões ao seu lado tornara-se um borrão escuro e o velho fazendeiro aplicando os golpes, parecia-lhe irreal. Não conseguia mais raciocinar. Depois, tudo escureceu.
Estava claro quando Rosilho acordou. O sol já ia alto num céu sem nuvens. Lembrou-se da sova que havia levado e sentiu um calafrio. Olhou em torno: viu a planície verde, os mourões, o curral e amou aquilo tudo. Levantou-se. Inexplicavelmente, sentia-se bem: Era preciso retornar ao trabalho. Parecia que tudo não passara de um sonho ruim. A porteira estava aberta. Caminhou um pouco e, leve, teve vontade de correr. Aproveitou a vastidão da várzea e correu, correu. Era bom. Sentia-se um alazão, o vento balançava sua crina, ele era livre. Correndo e correndo, de repente suas patas mergulharam no vazio, faltou-lhe o chão. Mas ele não queria parar. E continuou. Só então percebeu que o verde se distanciava, os animais no pasto ao lado ficavam menores, a casa era quase um ponto perdido na distância...
Pela primeira vez, Rosilho sorriu.
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