A CALÇA DE TROPICAL
Raymundo Silveira
Foi ontem, mas aconteceu no Natal de 1956. Vestia ainda calças curtas apesar de já me considerar um rapazinho, mas naquela noite de 24 de Dezembro iria vestir a minha primeira calça comprida para ir à Missa Do Galo. Antes haveria a ceia na casa da Ritinha, a primeira pessoa a me fazer sentir que poderia haver muito mais emoções do que uma simples amizade entre um homem e uma mulher. Aquela calça que eu iria vestir
— com a camisa de seda que vinha guardando desde Fevereiro daquele mesmo ano, quando completei meu décimo terceiro aniversário
— havia custado muitos pedidos ao meu pai, a renúncia aos sorvetes de cada final de semana, seis idas ao alfaiate e muitas noites de sono só de pensar na emoção de estar com a Ritinha e ela a me olhar como a um homem de verdade. Pois, aos catorze anos, ela já parecia uma mulherzinha.
Já nem havia mais a sombra daquela menina que havia sido minha amiga desde quando me entendi por gente. Cresceram com ela também os peitinhos, sua face se tornara a de uma deusa: olhar brilhante, lábios carnudos, maçãs do rosto salientes, coradas; ancas arredondadas e aquele olhar maroto que ela distribuía à toa fazia-me subir aos céus e descer aos infernos. No primeiro caso, quando ela me contemplava com um sorriso cujo significado ainda estou por decifrar. Hoje, passados quarenta e seis anos, ainda não consegui esquecê-lo; parecia um misto de afeição e piedade. No segundo, quando ela dirigia aos outros meninos, alguns mais crescidinhos do que eu e, ó humilhação, usando calças compridas, aquele mesmo olhar, mas ao contrário daquele que ela dirigia a mim, este era pleno de meiguice e de ternura. Eu tinha certeza de que os outros meninos mereciam aquele olhar que tanto me perturbava só porque usavam calças compridas. A minha primeira calça de homem era linda. Confeccionada com o melhor tropical existente nas lojas da minha aldeia; era de uma coloração acinzentada, cortada sob medida pelo seu Gaudêncio, o melhor alfaiate das redondezas.
Quando me via dentro dela durante as provas, através de um espelho na alfaiataria, eu me sentia alguns anos mais velho e parecido com o Élvis, o cantor por quem as meninas da minha aldeia suspiravam antes, durante e depois das sessões de cinema no Cine Teatro Odeon, onde o seu Luís projetava todos aqueles filmes em que ele parecia um ser sobrenatural. A sua voz, seu gingado e sua beleza máscula, provocavam frenesi e suspiros de desejo nas meninas e um misto de ciúme, admiração e uma vontade intensa de ser igual a ele, nos rapazes. Estávamos no mês de Novembro e eu contava cada dia que se passava para chegar o Natal.
"Seu Gaudêncio, o senhor tem certeza que minha roupa estará pronta até o dia 24 de Dezembro?" Ele se ria e me provocava com uma brincadeira que eu achava que era de pura maldade:
"Se não ficar você a vestirá no Ano Novo". Parece que ele adivinhava que na noite do reveillon a Ritinha faria sua estréia de debutante no baile que todos os anos era oferecido às moças que se iniciavam nos acontecimentos sociais. Eu nunca poderia ir àquele baile: primeiro porque meus pais eram muito rigorosos na educação dos filhos. Meu irmão Dorival, por exemplo, só pôde namorar, ir a festas e fazer serestas para as moças, quando completou dezoito anos; depois, porque o ordenado do meu pai mal era suficiente para manter, com dignidade, sim, mas a custa de muita economia, a nossa família. Acho que não carece dizer que o salário dele era a única fonte de renda da casa.
Aquela espera durou uma eternidade. No dia 23 de Dezembro fomos, meu pai e eu, no seu Gaudêncio, buscar a minha calça. Vesti-a mais uma vez para uma última prova. Sentia-me tão feliz, como se hoje tivesse ganhado o grande prêmio da loteria. Quando ele a embrulhou e entregou ao meu pai pedi para eu mesmo conduzi-la temendo que ele pudesse molhá-la com o seu suor, amarrotá-la ou perdê-la. Guardei-a no único armário da minha casa e o tranquei a chave. Passei o resto do dia a me imaginar sendo aquele príncipe que despertava a Bela Adormecida com um beijo e cuja história tantas vezes me fora contada pela minha prima Aparecida, desde quando eu tinha cinco ou seis anos e nunca me aborrecia em escutá-la, nem ela se cansava de repetir. O meu olhar para as pessoas denunciava tudo aquilo que se passava pelo meu coração adolescente. Sentia-me um homem; sentia que estava prestes a conquistar a menina/mulher que me inquietava, me fazia suspirar e para quem todos os meus pensamentos convergiam.
Aquela seria a véspera de Natal mais feliz da minha vida, mesmo considerando os natais da minha infância. Passei o dia seguinte sem sair de casa e de vez em quando eu abria o armário só para ver a minha calça de tropical. Às cinco da tarde pedi à Florência para ela reavivar, com um ferro de engomar a brasa, todos os quatro vincos e desfazer uma pequena ruga que eu mais imaginava do que via na cintura. Depois disto tomei a minha calça e levei-a ao meu quarto, como se estivesse conduzindo com ela todas as minhas esperanças. Coloquei-a sobre a minha mala e já ia tomar banho, quando meu pai me pediu para que eu fosse comprar cigarros para ele no Bar do seu Eleutério e pegar os presentes de Natal para ajudar a enfeitar a árvore da casa da Ritinha. Às oito horas, afinal, tomei meu banho e, ó maravilha, iria vestir a minha primeira calça comprida novinha em folha. Enxuguei-me mais demoradamente que o habitual a fim de que não respingasse nada na minha roupa. Vesti a cueca; penteei os cabelos, pus um pouco de brilhantina e de perfume, lavei as mãos e fui vestir a minha calça. Estou hoje com cinqüenta e seis anos de idade. Vivi, portanto mais quarenta e dois depois daquele episódio. Mas nunca sofri até hoje uma frustração igual àquela. Um rato havia roído mais de dez centímetros da minha calça comprida à altura do joelho direito.
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