UTOPIA
Marina Salles
Até hoje, se alguém me perguntasse, eu diria que era feliz. Eu achava que a vida estava perfeita, como nunca, nos últimos dez anos pelo menos, sequer passara pela minha mente a possibilidade de ser possível. Ou, talvez, até tenha passado, mas absurda como é, foi descartada. Até hoje eu diria que a vida não tinha problemas, que meu cotidiano, por mais morno e desgostoso que possa parecer agora, era uma rotina eternamente utópica: acordar para o almoço, tomar banho, desperdiçar a tarde sem nenhum remorso com o que quer que fosse, assistir os programas diários na televisão, jantar, e voltar ao computador onde ficava lendo, escrevendo, desenhando, navegando ou simplesmente apreciando a arte, alternadamente. Sabia que minha vida havia mudado radicalmente, e ainda estava mudando: terminei um livro fantástico, ganhei outro quase tão bom quanto, encontrei um passatempo novo, e ontem, fiquei das três às seis horas da matina jogando MUD, aquele RPG da internet que é completamente feito de texto, e que foi o vício dos meninos do colégio pouquíssimos meses atrás, e que eu nunca havia jogado decentemente antes. Eu já havia dito que minha vida mudou completamente nos dias entre o meu aniversário e o final das aulas, e comecei a pensar se fôra essa a mudança — a rotina, os objetivos, os valores, esse novo estilo de vida que me consumia fervorosamente sem que no fim do dia sobrasse aquele sentimento de eu-podia-fazer-mais-mas-não-deu-tempo. Pela primeira vez na minha vida, eu achava que o tempo não era menos da metade do que eu precisava para fazer todas aquelas coisas sagradas que meu corpo, minha mente, meu coração, minha alma clamavam furiosamente, e sem as quais, eu diria, não sobrevivia. Ao que parece a teoria se mostrara errada, pois em função de fazer tudo o que me desse vontade e o melhor possível sem perder tempo e sem ter que hesitar, eu negligenciara esses pequenos, prazerosos, indispensáveis momentos. Mesmo assim, até hoje eu diria sem pensar duas vezes que eu estava feliz, que não haviam tristezas, e por não haver tristezas minha vida era perfeita. Até hoje.
Hoje, a verdade dançou frente aos meus olhos, emanando uma luz ofuscante que destacava-se contra o céu violeta que se estendia sobre São Paulo. Violeta.. Nos outros dias, todos os dias, a maior parte das vezes que eu olhava para o céu noturno, ele era lilás, roxo, quem sabe rosa, vermelho, cinza, azul-escuro. Talvez até branco. Mas violeta? Nunca. Mas hoje o céu estava diferente dos outros dias do ano. Ao mesmo tempo deixava visível muitas de suas estrelas, e cobria-se de uma nuvem fina, estendida como um cobertor, através da qual o azul profundo do céu escuro ainda era subliminarmente visto. Violeta. Não fosse esse céu noturno, eu não teria visto, eu não teria entendido no que consistia meu erro, um grande erro, grotesco.
Admito que, de modo geral, não haviam, quase, tristezas. Mas apenas a ausência da mágoa não é suficiente para fazer felicidade. O fato de não me arrepender de nada não me trouxe alegria, apenas me poupou da dor, apenas me deixou... Neutra. Indiferente. Mais formiga, menos pessoa. Apenas outro rosto na multidão. Talvez por isso eu tenha evitado tanto as festas, os shows, os eventos, os grupos de pessoas indo a um lugar qualquer por um motivo qualquer que não me fazia sentido. Não queria, em hipótese alguma, me tornar uma delas.
Eu estava errada, selada no meu casulo de utopia tediosa e ainda assim tranqüila. Ouvia e cantava músicas que diziam exatamente o contrário do que eu sentia, exatamente o que eu queria sentir. Por vezes me emocionava, querendo acima de tudo que houvessem lágrimas que me viessem aos olhos, para eu poder me unir à multidão que chorava, feliz, mas eu nem sabia por quê? E meus olhos se enchiam de água doce, que teimava em não escorrer. E somente eu chorei de verdade, ainda que lágrimas leves e sem vontade, foi quando vi diante de mim a beleza infindável da música viva, aquela que eu tive um dia e que tanto amava que dada-me a chance nunca mais largava, aquela melodia indefinida, aquele batucar, e batucando em minha mente o pensamento "Eu poderia estar lá." Aí então chorei. Não de dor nem de alegria. De frustração. De inveja. De emoção. Saudade. E somente eu ri de verdade quando... não. Não houve uma única vez, desde aquela madrugada em que fomos todos eternamente crianças por um instante, em que eu ri com vontade, do fundo do peito, com alegria autêntica e não pirata. E somente eu percebi esse erro estúpido hoje, esta mesma noite, quando saí na noite e me vi coberta por um céu violeta, e envolta num ar gelado cheirando a... À noite.
Lá fora a noite me recebeu com o cheiro da água, das nuvens, da poluição, dos cachorros, das árvores e das frutas que delas pendem. Lá fora a noite me recebeu com pulos, latidos, lambidas de cachorros que apesar de presos dentro de sua casa não tinham medo de ser feliz. Lá fora a noite me deixou deitar no chão e esquecer os problemas da vida, com a alegria sincera de quem retorna ao seu lugar de origem. E só então eu compreendi: quando eu me proibira, inconscientemente, de chorar e de lamentar, e de me arrepender, também me impedira de rir, de cantar, de correr e de me sentir bem, não apenas viva e de barriga cheia. Só então eu notei como havia sido estúpida, de ignorar as dores de cabeça, as indigestões, as pálpebras pesadas, o sono constante. De assumir que a vida era perfeita quando nem ao menos eu podia ver minha irmã e minha mãe. Quando não passeava com os cachorros, nem brincava, nem conversava com eles ou os abraçava, embora às vezes os arrastasse em algum passeio cheio de objetivos ditados pelo relógio do quarto, eternamente errado. Quando sentava-me em frente à tela do computador admirando uma imagem entusiasmante, mas não conseguia sequer apreciá-la porque o som e a luz emitidos pela máquina me destruiam lenta, taxativamente. Quando nenhuma emoção verdadeira jamais aflorava em meu rosto eternamente indiferente.
Era essa a grande mudança: a rotina, os objetivos, os valores, tudo confinado nessa caixa de cinzas, nesse balde de lágrimas, esse travesseiro de algodão sufocante, esse chão escorregadio? Eu olho para a tela, meus olhos molhados aspirando pela simples capacidade de chorar, extravasar sentimento, liberando a própria essência da vida como a conhecemos. Não, como a queremos... E entretanto se me afastar daqui vou adormecer fatalmente, embora, curiosamente, eu esteja acordada há apenas dez horas... Meu corpo não concebe que eu queira me sentir descansada, saudável, feliz. Meu corpo acusa: foi minha a opção. No fim das contas, foi o que eu quis. Mas eu estava tão errada... Eu estava errada ao não mais uivar para a lua quando a lua era a rainha da noite. Eu estava errada ao deixar que os outros guiassem meus passos, apenas porque eles queriam que eu fosse mais 'normal'. Eu sei disso porque ao sair da noite e voltar para casa, meu coração se apertou e meus olhos doeram, e eu desisti de resistir à tentação, à necessidade, ao prazer de esquecer os deveres por um instante, e soltar minha alma numa nota alta, aguda, oscilante e muito desafinada, como ensaios de uma flauta há muito não utilizada por um flautista que esqueceu por muito tempo o quanto gostava de sua voz. Mas eu gritei para a noite e deixei-me perder no vácuo, entre as estrelas a milhares e milhões de anos luz de distância de mim. E naquele instante, era tudo o que havia de importante.
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