DESCONTROLADA
Lua (Lu Oncken)
Era um Dia dos Namorados ensolarado e quente. Dia de trabalho intenso. Ela (a namorada) não acordara muito bem. Levantou com o pé esquerdo. E com todo o seu jeito atrapalhado, característica que lhe é peculiar, tudo ficou ainda pior.
Demorou-se no café da manhã. Ela aprecia um bom café da manhã. E como! Mesmo atrasada, não abre mão de sentar-se à mesa e comer seu pãozinho, francês. Ou integral, quando está de dieta. Parou. Pensou se ia ou não à academia. E lá se ia mais um pouco de tempo perdido. Depois de longa meditação, idas e vindas do quarto para sala, da sala para o quarto, decidiu ir. Queria manter o corpo em ordem. Afinal, havia perdido mais de 10 quilos nos últimos meses e não queria de jeito nenhum voltar a velha forma.
Mas ainda tinha a depilação por fazer. As unhas, do pé e da mão, imploravam por socorro, enganchando em todas as roupas. E um trato no cabelo não era nada mal. O problema é que tudo isso tinha de caber na agenda daquele dia. Deixara tudo para a última hora. E era Dia dos Namorados. Não podia fazer feio para o maridão (o eterno namorado).
Demorou mais que o planejado na academia. O banho foi mais longo do que imaginara. Com direito à esfoliação, óleo, tratamento para os cabelos. Pele lisinha, cabelos sedosos. E lá se ia o ponteiro do relógio. Implacável. Depois, mal deu tempo de se arrumar para ir ao trabalho. E ainda prometera almoçar na casa da mãe. Cheia de culpas, após outro período de meditação, - seu dia era cheio desses períodos - resolveu não ir. Foi direto para o trabalho. Quando voltasse, teria tempo de tomar um novo banho, mais rápido, e acabar de se arrumar. Doce ilusão! Ela não tem a mínima noção do tempo.
Antes de sair, bebeu dois copos d'água. É uma espécie de ritual. Para ajudar a manter a forma é preciso tomar pelo menos dois litros de água por dia. Mora no primeiro andar. Foi pelas escadas. Quando desceu o último degrau, lembrou que havia esquecido um documento. Isso já se incorporou a sua rotina. Sempre esquece algo e volta. Foi o que fez.
Foi para o ponto do ônibus e perdeu a linha. Teve de esperar o próximo. Chegou correndo ao trabalho. E tarde para quem pretendia sair cedo. Muito trabalho a aguardava. Na hora de ir embora, todos os problemas da empresa vieram à tona e todos resolveram procurá-la ao mesmo tempo. Atrasou-se. Perdeu a hora no salão. Teve de esperar para ser atendida. Atrasou-se um pouco mais. Fez o pé, a mão e a depilção. Fora a vermelhidão da pele, agora estava decente. Ou quase.
Faltava o cabelo. Queria uma escova. Na pressa, resolveu ir em qualquer salão, ali em frente, embora o preço fosse um pouco alto. Afinal, quem não saberia fazer uma simples escova? E no Dia dos Namorados era permitido gastar um pouco a mais. O cabelereiro, um tanto afetado, rasgou elogios ao seu estilo. Certamente distraindo-a para o que preparava em suas madeixas. Bagunçou o cabelo de uma tal forma. Jogou pra cá, jogou pra lá. Colocou tudo pra cima. Mas, no fim, paracia tudo em ordem. Cabeleira lisa. Tudo pronto.
Mas tinha as flores, as velas, o jantar - pretendia cozinhar. Vinha pensando nisso há umas duas semanas, mas não preparara nada até então. Queria fazer um clima, montar um cenário de amor e sedução. Comprara um baralho erótico, uma venda e um óleo afrodisíaco para massagem. Queria encher a casa de pétalas de rosas vermelhas. Fazer um caminho até a cama. Mas o fato era que nem mesmo o presente ela havia comprado ainda.
Certa de que o tempo simplesmente havia parado para ela, decidiu ir ao shopping. Compraria o presente e aproveitaria para trocar uma calça que estava há quinze dias em sua bolsa. Perdida no tempo, nunca encontrava uma brecha para ir ao shopping e quando ia, esquecia a peça.
Já havia escurecido. O tempo úmido. Andou sete quarteirões. E chegou. A essa altura, já havia desistido das flores, das velas. De cozinhar. O presente seria ela. Um bom banho resolveria tudo. Perdir um jantar pelo telefone. Linda e maravilhosa como julgava estar, o marido não iria querer saber de mais nada.
Entrou pela porta principal do shopping. Foi quando resolveu passar a mão pelos cabelos. Áspero, elétrico, nas alturas! Não podia ser seu cabelo! Nunca o sentira assim antes. O toque lembrava um algodão doce. Foi direto para o banheiro, sem conseguir disfarçar o desespero em sua feição. Sentia um misto de ansiedade e revolta. Correu para o espelho. Gal, ou seria a Betânia? Não. Sou eu! Desgraçado! Como ele pôde fazer isso comigo? Logo hoje? - pensou. Não que ela tenha alguma coisa contra o cabelo de Gal ou Betânia. Mas para quem havia pedido uma escova bem lisa, na certeza de estar com os cabelos escorridos.
Compulsivamente, não parava de passar a mão pelos fios, com a esperança que eles baixassem e ficassem decentes. Pensou em voltar. Mas ele não merecia que ela andasse tudo de volta e se atrasasse mais ainda. Dá pra acreditar que eu acabei de fazer uma escova? - desabafou com a faxieira, que olhava fixamente para ela tentando imaginar o motivo de tanta angústia. Nossa! Tá mesmo estranho! - respondeu a interlocutora, para desespero completo da criatura. Ficou arrasada. Prendeu o cabelo num coque, na esperença de que ele cedesse.
Estava aflita, mas tinha uma vontade estranha e incontrolável de rir da próprio falta de sorte. Não sabia se era de nervoso, ou porque a cena era realmente hilária. Tinha que contar para alguém. Ligou para irmã que, àquela hora, já comemorava, com o respectivo, o Dia dos Namorados, num bom restaurante. Não satisfeita, ligou para a secretária. As duas tiveram um delicioso acesso de riso.
Passado o auge da situação e conformada com o cabelo de MPB, dirigiu-se à loja, onde trocaria sua calça e sairia satisfeita com uma boa roupa para vestir no dia seguinte, quando teria um congresso para cobrir.
Chegado lá, tirou a calça da bolsa. Como estava solta, pegou uma sujerinha de leve em uma das pernas, estava um pouco esbranquiçada. Podia até ter vindo assim. Comprou a calca justa na esperança de emagrecer um pouco mais naqueles quinze dias. Provou algumas vezes em casa, mas percebeu que não perderia aqueles dois quilos. Achou melhor desistir e trocar por um número maior, ou outro modelo.
Mas a vendedora atentou-se ao detalhe da manchinha esbranquiçada, que devia medir uns dois centímetros de diâmetro, e falcilmente removível com um belo tapa. Levou a mercadoria à gerente, que cuspiu algumas palavras amigáveis. Você usou a calça? É, porque está toda manchada. Era óbvio que ela não havia usado. Não tem esse costume. E não podia aceitar esse tipo de acusação. Mostrou a etiqueta de troca, perfeitamente presa. Intacta. E a infeliz da gerente, sentindo-se no comando da situação, soltou: Isso não quer dizer nada. A acusação tornava-se ainda pior. Você acha que eu seria capaz disso, de usar e vir trocar? A essa altura ela tremia sem parar. Não conseguia controlar o próprio corpo. Ele sacudia. Paracia que ia explodir.
O atendimento de vocês já foi melhor. Que absurdo! Eu não quero trocar mais nada. Pretendia fazer compras. Nunca mais volto. E a situação piorava a cada instante. Será que ia desmaiar? Foi só uma pergunta. Eu não disse que não vamos trocar. Não, não havia sido só uma pergunta. Era uma acusação sórdida. E havia pessoas em volta, clientes. A situação tornava-se cada vez mais constrangedora. Ela não era mais responsável pelos seus atos. Começou a chorar compulsivamente. Tentava parar. Em vão. As pessoas em volta olhando, sem entender. A vendedora sem graça. E a infeliz causadora da situação, a tal gerente, na tentativa de se ver livre daquela situação ridícula, convidou-a para tomar um café em outra loja da rede.
Saíram juntas. Talvez a tal gerente estivesse, agora, arrependida. Brigou com o namorado? Não fica assim. E ela cada vez mais irritada. Não era nada disso, afinal nem tudo na vida se resume a homem. Mas também não era capaz de explicar o que era, qual era o problema. O motivo não era para tanto. Contou sobre o desastre da escova. A gerente, agora no estilo melhor amiga, podia compreender a situacão e dava conselhos para alisar o cabelo. E ela tomou a água. Tomou o expresso.
Voltaram para a loja. Resolveu não trocar a calça (motivo que a levou ao shopping, fez com que ela se expusesse à umidade do tempo e estragasse seu penteado) - era uma questão de honra - e ainda saiu cheia de sacolas, mais uma vez esquecida do tempo. Eram 21h30 e o marido foi buscá-la no shopping. E ela ainda esqueceu uma sacola na loja. Voltou. Mais atraso.
Passaram num japonês. Levaram um combinado para dois. Banho tomado, cabelo de Gal, jantaram à luz de velas. No auge da comemoração, com direito aos apetrechos do sex shop, faltando poucos minutos para a meia-noite, liga a sogra. Pausa. O tempo implacável. O ponteiro. Tic-tac. Zero hora. O relógio marca: 13 de junho.
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