NATAL TROPICAL
Luís Valise

 
 
- Desligue o ar-condicionado que a minha rinite está me matando!

Felisberto virou o botão para off e abriu os vidros do carro, deixando entrar o calor e sair o mau-hálito de Clarice, que além da rinite carregava restos de queijo gorgonzola entre os dentes. Aproveitando que os vidros estavam abertos, Clarice acendeu um cigarro mentolado, deixando o carro com cheiro de merda de hortelã, o que combinava com o calor insuportável de um dia de Natal.

O trânsito estava caótico. A falta de chuvas provocara corte no fornecimento de energia elétrica, e como ninguém se arriscava sair de casa na escuridão da noite, o jeito foi transferir a ceia de Natal para o período da tarde. No Natal os espíritos deviam estar desarmados, alegres, venturosos, por isso em todos os carros viam-se rostos suados e sorridentes. Felisberto conseguira deixar o mau-humor em casa, como um cachorro amarrado a um poste, e, indiferente ao suor que lhe descia pelo pescoço, retribuiu o sorriso boçal do motorista ao lado. 

- Mãe, o Júnior tá comendo maionese!

No banco de trás ia o casal de filhos, cada um com uma bandeja no colo: o menino com a maionese, a menina com a torta de palmito. Clarice virou-se para trás como um raio, justo a tempo de flagrar o menino passando o dedo no creme:

- Felisberto Júnior, tire já o dedo daí! Se você mexer de novo na maionese leva uma lamparina na cara!

Clarice tinha predileção por esse argumento: uma sonora bofetada mostra o caminho do bem. Júnior olhou com ódio a irmã mais velha. Quando ninguém estivesse vendo ele daria uma pequena cuspida na travessa, porém nada que alterasse o sabor do quitute.

A falta de luz impedia que os semáforos funcionassem, e guardas à beira de um ataque de nervos tentavam controlar o fluxo de automóveis carregados de histeria cordial.

Quando finalmente chegaram, foram efusivamente saudados com vaias e assobios:

- Até que enfim!

- Quem eles pensam que são, Reis da Inglaterra?

- Clarice-de-Deus, você engordou?

- Felis, você está mais careca!

Depois de uns vinte minutos os adultos estavam sentados em volta da mesa da sala, e as crianças corriam por todos os lados. Gilberto, o dono da casa e irmão de Clarice levantou um brinde:

- Que no próximo ano todos estejamos aqui, com saúde e prosperidade!

Os copos se chocaram no ar. Prosperidade. Felisberto lembrou que o cunhado ainda não lhe pagara uma velha dívida, mas achou melhor não tocar no assunto num dia como esse. A cerveja não estava bem gelada, o gelo estocado no tanque derretera rápido demais, e as garrafas boiavam na água fresca. Gilberto vasilinou:

- Não vamos reclamar da cerveja quente, tem gente que não tem nada para beber, nem quente nem gelado! Por isso, vamos agradecer pelo que temos.

O início da comilança abafou qualquer conversa. Todos queriam voltar para casa antes do escurecer, assim apenas frases curtas atravessavam o mormaço, respondidas com breves meneios de cabeça e alguns muxoxos. E nesse ritmo a cerveja acabou logo. Anésia, mulher do Gilberto, logo correu preparar uma jarra de Kisuco para as crianças. Os homens olharam para Gilberto, que a contragosto perguntou se topavam passar para vinho.

- Claro!

- Ainda pergunta??

- Veeeeeeeeenha!

Gilberto foi até a cozinha e voltou com duas garrafas de Lambrusco. O espumante tinto e adocicado estava escondido atrás da geladeira, morno, bem morno mesmo, e foi servido nos copos de cerveja. Num gesto suicida, Felisberto virou seu copo de uma só vez. Clarice achou melhor antecipar a saída:

- Berto, não é melhor a gente ir indo antes que escureça?

O marido sentiu o cachorro tentando se soltar ao longe, esticou o braço resoluto:

- Outro!

Novamente bebeu tudo de uma vez. Não demorou nada. Solto, o cão veio ligeiro, se instalou entre os ombros de Felisberto e falou com a língua bamba:

- Ô Gilberto, e a nossa dívida? Quando é que você vai acertar o que me deve?

- Porra, Felis, e hoje lá é dia de falar nisso? E na frente de todo mundo?

- Eu já te cobrei no ano passado, na frente destas mesmas pessoas, qualé a novidade? Vai pagar ou não vai?

- Vou! Claro que eu vou! Mas primeiro vamos tomar mais um italiano.

Foi até a cozinha e voltou com outro Lambrusco quente. 

Clarice deixou-se cair no sofá. Pediu um palito e, entre outros, sentiu gosto de gorgonzola.
 
 

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