SOBRE MINHA ESPERANÇA
- baseado em fatos reais -
Humberto Raposa Celia-Silva
Já faz muitos anos, mas eu lembro como se fosse ontem. Eu era pequena, mal tinha forças para correr direito. Eu estava atravessando um murro bem alto acompanhando os passos da minha mãe. Ela parecia tão graciosa nos seus passos leves, mas eu não a acompanhava, meus irmãos estavam a minha frente também. Três irmãos gêmeos, todos nascidos na mesma data que eu, mas eles pareciam se equilibrar facilmente, mas eu não conseguia. Foi então que eu dei um passo em falso e cai do alto do muro. Por sorte e azar meu, avia um matagal onde eu caí, e por causa dele eu não morri, mas estava presa nele, não conseguia me mover, não conseguia olhar em volta, não consegui ver minha mãe indo embora junto aos meus irmãos. Por um momento eu perdi totalmente a voz, mas em pouco tempo eu estava gritando por ajuda. Minha voz ainda era fraca e acredito que minha mãe não me ouviu, mas continuei gritando, alguém iria me ajudar, ou então, algum animal feroz iria me comer. Foi quando ele apareceu, removeu um pouco das folhagens e me descobriu, mas alguém gritara alguma coisa e ele foi embora.
Começou a chuviscar levemente, mas meu corpo pequeno sentia o peso de cada gota. A minha voz havia ido embora e minha garganta doía. Minhas esperanças havia se esgotado, mas então eu ouvi o matagal se mover, e em seguida vi o mesmo homem, desta vez molhado, aparentemente havia ficado muito tempo naquela chuva fina. Ele estava realmente me procurando, percebi quando olhei no fundo dos olhos dele. Pegou-me com uma de suas mãos apenas, mas não me retirou de lá, apenas me moveu um pouco até onde ele pôde usar as duas mãos para me pegar com jeito. Suas mãos dançaram por meu corpo tentando encontrar uma posição mais confortável, mas recuava em alguns momentos, ele percebia o meu medo e tentava me acalmar. Eu só queria entender o que ele dizia, mas o tom da voz era mais do que o suficiente para me acalmar.
Ele me colocou no colo e me carregou por algum tempo. Logo então me colocou no chão, e ficou me observando. Eu estava faminta e havia algum cheiro de comida por perto. Percebi o quanto minhas pernas estavam fracas, mas consegui chegar até aquele resto de comida e o devorei, mas apenas em parte. Ele viu que eu já estava recuperada do susto e estava me preocupando mais com meu estômago, então me carregou por um longo percurso. Ele com certeza não andava com a delicadeza de minha mãe, nem a metade, mas me segurava de forma firme e ao mesmo tempo me deixava livre pra me mover, e eu tentava fugir, muitas vezes. Se teve uma coisa que minha mãe me ensinou foi a desconfiar de tudo o que parece bom demais, então eu tentava fugir, ele não deixava e eu comecei a me desesperar. Ele me olhou nos olhos algumas vezes e me dizia algo... eu me acalmava, por medo parava de me mover, mas logo eu tentava de novo. Finalmente ele parou, abriu uma porta e eu vi aquele animal, um pouco maior do que eu, mas ele me olhava com ódio, um olhar completamente diferente do olhar doce do homem.
Depois de me levar pra dentro da casa me deu um pouco de leite para beber e carne cozida. O leite eu aceitei, bebi até me sentir confortável, mas na carne nem toquei, o animal feroz comeu a minha parte e a dele. O homem sentou perto de mim e ficou me observando comer. Não sabia o que ele queria então continuei com medo. Quando o medo finalmente superou a fome, eu procurei onde me esconder, mas ele era mais ágil do que eu pensava, e podia me descobrir onde eu estivesse. Eu só queria liberdade, e ele sabia disso. Levou-me para fora e me libertou, mas tomou cuidado para me colocar num local protegido da chuva. Por um instante eu fiquei por lá, e ele veio algumas vezes para me ver até que ele não voltou mais. Tudo isso demorou não mais do que 5 minutos. Mas eu senti falta dele quando ele parou de aparecer. A presença dele me deixava com medo, mais por ser uma presença confortável do que por ser ameaçadora, aliás, ameaçador era a última coisa que ele era.
Eu sabia onde o encontrar, então entrei pela casa dele, mas aquele animal estava me observando, e foi só entrar na casa e ele me perseguiu. Agora sim eu estava com medo, por sorte minha voz já havia voltado então gritei por ajuda, e, como eu esperava, o homem veio. Brigou com o animal, me defendeu e quase foi mordido, mas impôs sua força e eu estava salva, de novo, mas com a barriga dolorida, por causa de uma mordida do animal.
O homem me enrolou em um cobertor e me carregou novamente. Desta vez estava chovendo forte, e ele estava se esforçando para que eu não me molhasse, mas ele estava molhado de chuva e de suor.
Ele conversava comigo enquanto me carregava, eu não entendi uma palavra, mas ouvia atentamente, tentava sugar o som daquela voz para poder guardar comigo um pouco dela, dele. Ele não me disse, ou se disse, eu não entendi mesmo, mas eu sabia que ele iria me deixar, mas estava procurando um lugar adequado. Paramos, ele esperou a chuva parar para me deixar no chão novamente. Comecei a olhar em volta, era um lugar seguro, ele ficou algum tempo comigo para que ele também tivesse certeza de que o local era seguro. Logo ele foi embora. Conforme ele se afastava eu ia calculando na minha jovem mente o que acabara de acontecer. Claro que eu só viria a desvendar a imensidão do ato daquele homem depois de velha. Foi a coisa mais gentil e bondosa que alguém fez por mim. Aquele homem acendeu algo em mim que mantenho aceso até hoje, a esperança de que haja outros como ele, que pratiquem o bem incondicional. Algumas vezes eu retornei para o local onde ele me deixou, mas nunca mais o encontrei. Sei que agora ele não deve ter mais a juventude de seus 20 e poucos anos, mas sei que o reconheceria. Seus olhos, seu cheiro e principalmente sua voz. Se eu o visse novamente, mas nunca o vi. Ele nunca voltou, afinal, quem esperaria lealdade de um mero gato, ainda mais uma fêmea, mas eu o espero. Em algum lugar dentro de mim eu tenho esperança.
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