A MULHER DA SUA VIDA
Fábio Fujita

A pior coisa que pode acontecer a um homem é quando a mulher da vida dele existe. Não a mulher da vida dele, atual: a mulher da vida dele, mesmo. Pensando bem, pode até ser pior: quando ela existe e ele a conhece. Ou o extremo de tudo: existe, ele a conhece e ela ressurge, solteira. É o pior de tipo de mulher da sua vida. 

Porque a mulher da sua vida é como aquela camisa sofisticada que você tem e que, de tão sofisticada, você não se atreve a usá-la. Com ela (a mulher, não a camisa), você fica ali, naquela meia-distância, olhando-a, venerando-a e pensando que haverá, quem sabe, um dia, uma ocasião especial que justifique incorporá-la à sua vida, o que daria sentido a tanta coisa. Mas não pode ser agora, porque a mulher da sua vida não chega chegando toda estabanada, como quem precisa muito de você. Até porque, para a mulher da sua vida, você precisa se preparar - e você nem arrumou a sala nem comprou aqueles suquinhos especiais que ela tanto gosta. A mulher da sua vida não bebe Coca-Cola, você sabe bem (ou deveria ter imaginado, seu burro). 

Essa preparação é um caso sério porque, se ela é uma típica mulher da sua vida, você se prepara a vida toda e ela nunca vem. Algumas até enganam: esboçam a não-chegada em algo que se convencionou denominar casamento. Via de regra, dá no óbvio: tornam-se a quase mulher da sua vida, ou a mulher da sua vida por comodidade.

Mas não ache que a mulher da sua vida é utópica. Ela pode existir, sim. Não é que a mulher da sua vida seja difícil. A vida (conceito, não a minha ou a sua) é que é uma merda e coloca a mulher da sua vida na vida de outra vida. Você se resigna porque, mesmo na vida de outra vida, a mulher da sua vida te envolve numa teia de encanto que só ela tem e que só você sente com tamanha intensidade, porque ela é a mulher da sua vida, e não de outra, ainda que esteja nesta outra. O encanto é um comichão que se exorciza na vontade de convidá-la para a sua vida, tipo "entre, só não repare a bagunça" (ela sabe que a culpa é dela, mas disfarça). Só que você não convida porque, você pensa, não saberia lidar com a mulher da sua vida. Tão patético imaginar a mulher da sua vida fazendo parte da sua vida! Mimos e cafés da manhã interrompidos para fruí-la em seu frescor matinal, a repetição dos abraços, as preguiças compartilhadas, a comunicação entre silêncios e aquilo tudo. Peraí. Você pára, pensa e se dá conta de quanto é estúpida a vida ideal. Ela na sua vida. Ora. 

Mesmo você lamentando o cocô que é a sua vida, ou se escondendo no cinema porque ao menos a vida (conceito, não a minha ou a sua) inventou o Woody Allen, você pensa nos cabelos esvoaçantes dela, tão longos, exalando aquele permanente cheiro de shampoo, como de todas as mulheres. É um bom sinal, porque neste caso você não está pensando na mulher da sua vida: a mulher da sua vida tem cabelo curto, porque você adora a nudez do pescoço feminino, e é um cabelo que não exala aquele permanente cheiro de shampoo, porque isso é coisa de todas as mulheres. O cabelo da mulher da sua vida tem o cheiro da mulher da sua vida, e o que é melhor, com a mulher da sua vida anexada, logo abaixo da raiz.

Pode existir, sim, e de repente você até a conhece. No início, você tentou desdenhar, mas o jeitinho dela te perseguiu decisivamente. Você tentando se esquivar daquele jeitinho dela, e aquele jeitinho dela na sua cola, parecendo o burrinho atrás do Shrek, insinuando que é um jeitinho difícil de se livrar, porque (ela, não o burrinho ou o ogro) dá mordidinhas no pescoço (seu), mas gosta mesmo é de mordidinhas no pescoço (dela), aquela coisa de joguinhos, porque é a mulher da sua vida, mas é mulher. E aquele jeitinho incansável, ali, às vezes na presença dela, às vezes na ausência dela, às vezes, tantas vezes, que saco aquele jeitinho dela que não me deixa. Mas não seria você quem ia sucumbir diante de um jeitinho, ora, ela que fosse logo tirando o cavalinho da chuva, ainda mais porque você odeia diminutivos. Só que aí você reparou que ela tem uns olhos assim, meio devassos, sem vulgaridade ou pré-determinação sugestiva. E uma doçura (sem açúcar) no andar. E até as costas da mão dela são lindas. E umas pernas macias, que você não tocou, mas sabe que são macias porque muitas coisas você saca de cara, sem te falarem: é como quando você diz que prefere o ovo de páscoa da Nestlé ao da Visconti: o da Visconti tem gosto de barro, justifica, mesmo você jamais tendo provado barro antes. Você simplesmente sabe. Que pernas macias. Quem me dera fosse só um jeitinho.

Era melhor que ela não existisse. Existindo, melhor que você não a conhecesse. Conhecendo, que não ressurgisse, solteira. E ressurgindo, solteira, que não ficasse dando demonstrações de que é, efetivamente, a mulher da sua vida, porque você lutou tanto para esquecê-la. Não fora nada fácil tê-la visto na vida de outra vida, e mesmo que ela jamais tenha sabido disso, você sabe. Como você sabe. Você esqueceu. Não, você não esqueceu merda nenhuma. Você teve de aprender a ver, nela, só a mulher, sem complementos. Teve de procurar sorrisos em outras mulheres e em outras vidas, nunca na combinação delas no singular. Você só descobriu os prazeres efêmeros: o alívio das dores nas costas, o bolo crocante do Amor aos Pedaços, Pão & Tulipas, a timidez da anônima pequena diante de suas bogartianas, "oi, estava te olhando...", aquelas coisas outrora impensáveis. O minimalismo de felicidade. A barganha de felicidade. Os paliativos de felicidade. Porque sem a mulher da sua vida, sua vida é só uma vida. Efêmera. 

Difícil é entender para que serve a mulher da sua vida, na sua vida. Ainda mais quando ela ressurge, solteira. Solteira e leve, leve na lembrança, como naquela canção da Maria Rita. Leve, tão leve.

E você se perguntando: vou ao cinema ou visto minha melhor camisa?

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.