CAROCHINHA PÓS-MODERNA
Doca Ramos Mello

— E esse príncipe que não aparece nunca?

Hiii, Cinderal está histérica... A pobre diz que anda pelo gogó por causa do conteúdo brega do samba-enredo de sua vidinha eternamente água-com-açúcar. O mundo fervendo, toda gente mudando de visual, de carreira, de amores, de profissão, e ela estacionada na historinha de sempre.

— Depois, os pais reclamam que a criançada só se interessa pelas Meninas Superpoderosas. Até eu, francamente!

Ela quer retoques radicais. Por que cargas d'água não escalaram Benedito Ruy Barbosa para atualizar-lhe o enredo? Quem viu como o autor pintou a bóia-fria que, tempos depois, virou a princesa achincalhada de um príncipe de boca larga (o ministro, gente...), sabe como o homem constrói uma Borralheira cheia de charme e altamente sensual... Por que não ela, Cinderela? Quem sabe pudesse ele apimentar-lhe mais a historinha, transportá-la para Las Vegas e dar a ela uma limusine igual a das estrelas de Hollywood? Ou o rolls-royce da presidência? O que Marisa Letícia tem que ela não tem, ai, injustiça...

Em vez disso, tome madrasta grossa, nariguda e má (mais bruxa, impossível), irmãs medonhas e invejosas (ela não poderia ser irmã das Spice Girls?), serviço doméstico escravo e desprovido de aparelhagem de última geração, roupinhas chulés de marcas desconhecidas jamais aprovadas por Constanza Pascolatto), trapos mesmo, carruagem de abóbora, um bailinho meia-boca que termina à meia-noite e aquela dantesca figura do príncipe! Lerdíssimo, ainda por cima. Não fosse ter ela recorrido ao expediente surrado de largar o sapatinho de cristal - de cristal?! Fala sério... Pois não fosse isso, aí mesmo é que o show ia dar de vez com os burros n'água.

— E o final feliz, cadê o meu final feliz, ai de mim?!

Cinderela está fora de si. Que final feliz mais medíocre é esse? Ali está ela, a esperar dias a fio que o Príncipe Lerdeza a descubra debaixo dos trapinhos sujos que o scrip prescreveu para ela, ô coisa mais triste... Mal-vestida, mal-ajambrada, sem poder ir ao cabeleireiro, as unhas em petição de miséria, ai, logo ela, que acalenta sonhos tão diversos do roteiro que lhe impuseram...

Se ao menos em lugar de Cindy lhe permitissem ser Sandy, já pensou? Sucesso garantido, muito dinheiro no bolso, tietes aos borbotões, viagens aos exterior, roupas, jóias, autógrafos... Sim, com o inconveniente de ter de carregar nas costas um irmãozinho chato e sem-graça, mas para quem arca há tempos com madrasta cruel e duas irmãs medonhas da pior espécie, Júnior é bico. 

— E esse príncipe, sai ou não sai?

Cinderela não gosta que comentem, mas anda com receio de envelhecer naquele castelo - e castelo nem se usa mais! -, sem ter a chance de sair dali para o tal final feliz, ainda mais com V. Excia. Metalurgíssima no poder, oh, céus!

— Final feliz com o PT e celulite?! 

Oh, terror dos terrores, Cindy está engolindo a esperança que venceu o medo, acha que dá p'ra segurar até que passe a tragédia, mas já avistou umas boas cascas de laranja nas coxas aveludadas, sem contar sua coluna, que vem padecendo agruras sem par, a cada forçada empinada do traseiro - e não é assim que tantas tops sobrevivem, fazem fama e fortuna? Ela, que também é filha de Deus, sabe que tem de empinar a bunda ou não chega lá, ô sufoco...

Fora as faces sempre ameaçadas pelo tempo que urge sem parar, os bicos dos peitos, arrogantes, que ensaiam se voltar perigosamente para o chão, os pneus que planejam postar-se em suas ancas e montar de vez uma borracharia, o abdome prepotente eternamente insensível aos quatrocentos abdominais diários e sistemáticos, ai, a vida.. 

— Só me falta um prínipe a cavalo!

Por que não na Ferrari do Rubinho? Ah, francamente, sua historinha já deu tudo o que tinha de dar.

— Tornei-me démodé.

"Démodé"?! Chiii, que mico! Quem usa o francês hoje em dia, criatura? Uma língua infestada de acentos, os verbos rococós com terminações estonteantes, um arrastar de erres sem fim... Cindy está mesmo por fora, totalmente "out". É realmente do tempo da carochinha, coitada.

— Carochinha...?! Que carochinha? Sou um conto de fadas!

É. Vai mal a coisa... 

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