ACORDES
DISSONANTES V
Beto
Muniz
De repente
eu já não era menino. Paramos numa esquina, em frente a um salão de cabeleireiros onde, sem premeditações, papai tocou a música desconhecida, pungente, aquela da praça sem estrelas, que eu nunca soube o nome e desconfio que era de sua autoria. Tocava sem pretensão alguma, talvez para me agradar, pois sabia que eu adorava ouvi-la. Em meio à melodia uma senhora saiu do salão, depositou uma nota de valor considerável diretamente no bolso do meu pai e perguntou se ele poderia tocar do outro lado da rua. Ele sorriu e disse que sim, poderia perfeitamente tocar lá do outro lado da rua. A senhora agradeceu e entrou. Papai sequer moveu um passo. Apenas fechou os olhos, ajeitou a correia do sax sobre a gola do paletó, pigarreou, posicionou a boquilha e transmutou sua dignidade em som. Tocou como se a música tivesse o poder de varrer preconceitos, ignorâncias e agravos. Senti orgulho.
Um orgulho que me trouxe a última paisagem interna, um cenário de rochas
sobrepostas formando uma torre enorme de algum castelo colossal. Ninguém
saiu para reclamar e já era noite quando finalmente fomos para o outro
lado da rua, cansados e dignos. É a última lembrança que tenho do meu
pai. Dias depois nós o perdemos. Eu tinha quinze anos e herdei seu saxofone.
Ao tomar posse da herança já não guardava nenhum vestígio do menino, não
encontrei paisagens para traduzir a saudade crescendo, agigantando, se
alimentando do tempo e ficando cada dia maior. (não continua) |