TIO CHICO
Anna Carolina N. Fagundes
Tio Chico era uma piada ambulante. Não tinha um que não risse com as histórias que ele tinha para contar. E história não faltava - ele se gabava de só repetir causo quando os filhos (depois os netos e sobrinhos) pediam. Se não pediam, era a velha mis-en-scéne de sempre. Ele chegava, cumprimentava todo mundo, fazia um agrado no cão ou gato da casa, sentava-se na primeira cadeira que lhe era oferecida e dizia, com um sorriso.
- Já contei a da marola que abalou Ipanema?
E todo mundo virava quase ao mesmo tempo - que marola? Que história é essa de marola? E lá ia tio Chico contar a história:
- Olhe, era no tempo em que eu trabalhava no Rio (tio Chico fora gerente de manutenção em grandes hotéis, como o Copacabana Palace)... Eu não sabia a diferença de zona sul pra zona norte. Para vocês terem uma idéia, um mané me mandou buscar uma encomenda em São João do Meriti e eu achei que era do lado do hotel... Mas essa história da marola...
E assim ia até que ele concluía a história (a "marola" fora uma grande comoção na área de Ipanema, quando disseram que o Francisco Cuoco estava em uma loja de roupas - no tempo em que o Francisco Cuoco era o maior galã do Brasil - e foi tanta gente ver se era verdade que tiveram que isolar a área e chamar a polícia e os bombeiros), sempre com grande entonação e pausas estratégicas. Tio Chico sabia contar uma história como ninguém.
Algumas ficaram famosas na minha família - a do gato raro do dignatário indiano, que foi caçado por todos os funcionários do Copacabana Palace, e encontrado caçando baratas na cozinha; a da festa de casamento que terminou com noivo, noiva e padrinhos desabando dentro da piscina sem querer; a do escritor famoso que ficou preso no elevador e quase morreu de susto. Outras histórias envolviam Curitiba, Manaus (onde tio Chico morou durante dez anos), parentes vivos, parentes já falecidos. Reunião de família, sem tio Chico, não tinha graça nenhuma.
Os anos foram passando, e tio Chico foi ficando cada vez mais cansado, respirando pesado, andando devagar. No entanto, sempre que havia mais de três pessoas reunidas em casa, ele se sentava e contava uma história nova. Ele se mantinha fiel à sua máxima de só repetir histórias a pedidos.
Um dia, ele foi internado depois de ter passado muito mal. O médico, amigo da família, não deu esperanças - tio Chico tinha um tumor inoperável no pulmão. A única coisa que podíamos fazer por ele era deixá-lo ir em paz - no hospital, com o devido tratamento, ou em casa. A família pensou em ir falar com ele, mas por caridade ou covardia (depende de quem vê), não disse nada, e o levou de volta para casa.
Na última vez que eu o vi, ele estava deitado na cama - ficar sentado lhe cansava muito. Ainda sorria, e como. Sentei perto dele, e ele perguntou, num fio de voz:
- Já contei a do marinheiro que era primo do Getúlio Vargas?
- Não, tio Chico. Que marinheiro?
E ele foi contando a história, mantendo a narrativa impecável apesar da falta de fôlego, até pegar no sono e dormir, sorrindo sempre.
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