ANO NOVO, VIDA NOVA
Alberto Carmo
Ouvi o apito da fábrica pela última vez. Fechei os olhos, imaginei-me num trem que partia, lento, aos soluços, entrando vagarosamente numa convulsão de engasgos, medos, terrores e desespero.
Já não podia ter aquele automóvel. Por quanto tempo ainda antes de... não quero pensar nisso agora, não agora. Acelerei com força. Não sentia raiva do diretor, apenas tristeza - que culpa tem ele, pobre coitado. Hoje uns gerentes, amanhã talvez ele, depois... depois fica pra depois!
Imaginei o que o pobre pensaria ao se deitar. Sei o que vai pensar: - Ele tem família, tem filhos, é quase Natal, como vai se arranjar? Meu Deus, por que tenho que fazer isso?
Quis sentir pena dele, mas no momento minha vida era a bola da vez. Duas semanas para o Natal, os presentes, a ceia, a viagem nas férias que ia tirar em janeiro. Pior ainda, como vou dizer à minha mulher? E os meus filhos o que vão pensar?
Deixei o carro na garagem do prédio e, no elevador, perguntei-me: - Digo antes ou depois do jantar? Decidi que contaria tudo antes - quanto mais rápido melhor.
Quando a porta do elevador abriu, olhei para a porta do meu vizinho. Trabalha num banco. Apavorou-me pensar que poderia ser o único desempregado no condomínio. O único, o primeiro, o que acontece no mundo?
A notícia, dei-a seca e rápida. O choro foi geral e acabamos abraçados todos. O jantar foi farto, talvez o mais farto dos próximos meses, sabíamos, intuíamos de alguma forma.
Só pude sentar-me a pensar depois de garantir que os presentes de Natal já haviam sido comprados, que nada seria diferente até o final do ano. Só a viagem teríamos que cancelar. Mas podemos passar uns dias na chácara da vovó e... depois pensamos nisso.
Decidido! Até o Ano Novo nada vai mudar. Quero perder a dignidade aos poucos. Duas semanas, talvez três, vão ser suficientes. Portanto, não temos tempo a perder.
Fui até a Block Buster - arrasa quarteirão quer dizer. Arrasaram meu quarteirão, pensei. Não importa, quero dois filmes, os mais procurados. Ralhei com meu filho por colocar o filme no vídeo com força: - Assim pode quebrar o aparelho e depois não vou conseguir vender nem por... chega! Coloca o filme como quiser, e quem quiser que compre depois pelo preço que quiser!
- Pessoal, sabe aquele negócio de americano de "família vende tudo", a gente pode vender a... Stop! Antes do Ano Novo não!
Foi estranho acordar mais tarde, sem horário. Fui até a padaria comprar pão - há quanto tempo não fazia isso. Gosto de baguetes e aqueles com massa folhada. Será que é melhor comprar pão francês? Afinal, vão ser tempos de vacas magras. Não! Baguetes e folhados! E... e... pensei e pensei: - E uma dúzia de Skol! Não, meia-dúzia! Não, uma dúzia! Vou fazer churrasco no almoço.
Passei no açougue e ordenei: - Picanha, maminha, costelinha, lingüiça e... chega!
Dormi a tarde inteira e acordei com fome de novo. Era uma fome que ainda não devia sentir, mas já sentia. Era fome que só tinha que vir no Ano Novo, mas já estava aqui, na minha boca. Comi com voracidade o que sobrou, meios pedaços disso e daquilo, duas latinhas que ainda ficaram na geladeira.
Sentei na varanda como se fosse a última vez. Aqueles prédios todos, as alturas, a rua lá embaixo, já não estavam ali, já me eram lembranças, queria deixá-las bem gravadas - uma tatuagem de piche queimando minha testa de rugas. Quarenta e oito, muita experiência e nenhuma chance no meio dessa molecada cheia de MBA. Poderia tentar, mas quanto tempo levaria até cair na realidade? Ainda tive força suficiente para deduzir que não levaria mais que dois meses, antes de cair no choro.
Percebi que ela chorou escondida depois do churrasco - sei que já adivinhara que não ia mais poder terminar o curso de psicologia. Ela, que adiou tanto esse curso por causa das crianças. Dei um murro na mesa de vidro e ela se estilhaçou. Droga!
Posso lavar carros, trabalhar de garção. Garção? E caí na gargalhada: - Alfredo, traz mais uma gelada! O Alfredo já deve estar para se aposentar. Inverti-me na lembrança e me vi servindo meu garção preferido que sabia o tempo exato de trazer mais uma. Pela primeira vez na vida vi-me como um incompetente - vou ser despedido na primeira noite, e por justa causa. Jamais aceitaria que me servisse!
Camelô? Não, isso não! Mas eu poderia vender bugigangas, adoro essas bancas cheias de bugigangas. Carrinho de pilha, toca isso, toca aquilo. Não, é máfia, nessa não entro que morro na véspera, feito o peru de Natal. E o brio profissional? Prefiro vender cachorro-quente na frente da fábrica. O Tavares come dois todo dia antes de ir pra casa. Caramba, o que o Tavares vai pensar ao me ver ali botando purê de batata no sanduíche? Não, não vai dar certo.
Vou pra cama com ela e que se foda o mundo. Dia 2 a gente começa a fazer a lista do que é dispensável. As crianças já saíram e talvez demore um pouco até estarmos assim tão sós depois.
- Querida, vem cá, the lone ranger rides again! Aiou, Silver! Dignidade, dignidade!
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