SÁBADO DE CINZAS
Luís Valise

 
 

Lupércio despertou com o papagaio do vizinho currupaqueando o sono alheio. Pelas frestas da janela a calda quente do sol escorria na direção da cama. Um fio de suor fez cócegas em seu pescoço até pousar no travesseiro úmido, e em dias assim ele acordava de mau humor: - Com os diabos, até parece que estamos em África! Muito acima do peso, Lupércio prometeu-se pela enésima vez: - Preciso emagrecer. E também agora tinha motivo para adiar o início do regime, pois além do calor a exigir cerveja, era sábado. E por cima, de carnaval.

Levantou-se com cuidados de não acordar a mulher, que indiferente ao calor e à ave dormia a sono solto. Nela o suor não corria pelo pescoço, mas acumulava-se entre os seios até correr em grossas gotas rumo às axilas. No espelho do banheiro os olhos inchados denunciavam as doses de conhaque da noite anterior. Deixou pra lá. Ao fim do dia estaria novo e pronto para mais um carnaval inesquecível, como já era tradição em sua família. Seu pai prometera ao avô, ele prometera ao pai, e seu filho também haveria de prometer-lhe um carnaval inesquecível. Promessa é promessa. A água fria em sua nuca fez com que ele soltasse um berro curto mas alto o suficiente para acordar sua mulher e calar o papagaio.

Enquanto o marido tomava banho, Marlene sentou-se à privada para o xixizinho matinal, e saiu do torpor num repente, ao ouvir o marido cantar "Eu vou pra Maracangalha, eu vou/ Eu vou de uniforme branco, eu vou...". Desejou que o tempo parasse, ou que, num corte de cinema, já fosse o sábado seguinte. Como em todos os carnavais, desde que conhecera Lupércio, a obrigação de um sábado inesquecível trazia junto a imponderável viuvez em vida ou o provável luto precoce. No sábado de carnaval, por tradição de família, Lupércio saía pra matar ou morrer.

Cafezinho tomado rapidamente, bermuda branca e folgada, Lupércio vestiu a camiseta de propaganda eleitoral de um deputado patrocinado pelo jogo do bicho e foi para o bar da esquina, onde teriam início as comemorações. Nada demais, as brincadeiras eram até inocentes, e não passavam de gracejos às mulheres que cruzavam a rua, ou apelidos para os homens que sorriam e levavam na esportiva. Lá pela hora do almoço Lupércio já enrolava a língua. Alguns ovos duros, manjubinhas fritas, e muita cerveja entremeada por doses de cachaça puseram-no à beira do nocaute. Sábia, Marlene apareceu na hora certa, e carinhosamente arrastou Lupércio à força para casa. Mais tarde ele agradeceria, pois não fosse ela e o sábado estaria terminado ali mesmo. Deitou-se, e como a cama não parava de ondular, sentiu enjôo. Com grande esforço conseguiu esticar a cabeça para fora da cama e vomitou ali mesmo o início de carnaval. Prevenida, Marlene havia esticado no chão a camiseta do deputado-ladrão, que recebeu no rosto sorridente o banquete de boteco. Lupércio só acordou no início da noite, e também pediu um corte de cinema em que a ressaca fosse só uma lembrança. Mas como seu avô, e como seu pai, levantou-se heroicamente. Um copo grande com chá de carqueja estava sobre a mesa da cozinha. Bebeu de uma vez, sem fazer cara feia. Na sala, Marlene assistia novela. Lupércio sentou-se ao seu lado, em silêncio, e pegou sua mão. Ele só fazia isso nos sábados de carnaval, e ela só esperava que houvessem outros carnavais. Quando sentiu-se melhor, ele voltou para o quarto. Abriu a última gaveta da cômoda, e lá no fundo estava o pequeno punhal que passava de pai pra filho. Tirou-o da bainha de couro, acariciou a lâmina imaculada e chamou pelo filho. Já era grandinho, ouviria a história do bisavô, do avô e do pai. Um dia, muitos anos depois, chegaria sua vez de pegar o punhal, num sábado de carnaval, e sair pra matar ou morrer. A tradição de família tinha que ser mantida. Durante o resto do ano era coisa a ser esquecida.

Vindo do quarto dos pais,o menino sentou-se junto da mãe, e Marlene notou sua palidez e um súbito envelhecimento. Nada disse, nem lhe foi perguntado. Logo apareceu Lupércio, todo de branco, um sorriso resignado nos lábios, camisa folgada na cintura ocultando a mortal tradição. Beijou a mulher no rosto, o filho na testa, e saiu cantarolando baixinho "Eu vou pra Maracangalha, eu vou/ Eu vou de uniforme branco, eu vou...".

 
 

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