SAPECA
Eduardo Prearo
I
Eddoardo queria que seu pai o levasse para Bagdá; seu pai, um caixeiro viajante bem sucedido. E Veneza estava desbundante naquele verão de 1800. O mar, azul-turquesa, abrigava centenas de barquinhos brancos na sua superfície. Cabras e carneiros rondavam soltos pelo cais. As meretrizes pareciam operárias vestindo-se de bordô. Gangstêrs vez ou outra atacavam gente que ficava na orla, gente que observava todo o grande movimento. É claro que para Paschoal, Eddoardo não iria de jeito nenhum. Não iria e ponto final. Mas Eddoardo era teimoso, e entrou no navio escondido do pai, indo parar no setor de animais. Ficou ali, durante três horas, e ao olhar por uma janelinha, percebeu que já estava em alto-mar. De repente, sentiu-se feliz da vida. Foi espiar algumas panteras enjauladas, panteras barulhentas, que ao notarem sua presença, caíram num retraimento absurdo. Os animais dormiam quando Eddoardo se aproximava deles, fora sempre assim. Ele era menos mentiroso do que exagerado. Uma vez uma cobra havia entrado pela janela do seu quarto; ele saiu correndo para contar a todos, fascinado. Mas ninguém acreditou. E a cobra acabou indo embora sem que ninguém a visse, a não ser ele próprio. Achava que cobras podiam servir de gravatas, cobras vivas. Havia também muitos outros animais no navio, como as araras vermelhas da América do Sul; puseram-nas soltas ali, mas Eddoardo não tinha medo algum, não tinha medo de nada nem de ninguém.
A fome surgiu do nada, do estômago, de alguma parte. Seus pais não se preocupavam com ele, criavam-no livre. Mesmo assim, Eddoardo deixou uma cartinha para sua mãe debaixo do travesseiro dela...
"Dona Amanda,
Fui com papai para Bagdá,
mas ele saberá disso somente amanhã.
Seu filho."
Eddoardo resolveu ir até o convés, pois seu estômago estava roncando e ele já estava meio tonto. Queria encontrar Paschoal. Foi fácil chegar até lá. Viu que havia um banquete com gente bem-vestida e indo até a mesa, pegou alguns lanches de ricota e colocou-os no bolso, com cuidado. Ninguém o notara, absolutamente ninguém; e quanto a seu pai, devia estar dormindo. De qualquer forma, foi investigar e pediu a um homem que parecia o comandante, um favor: que encontrasse seu pai, o senhor Paschoal, o mais depressa possível. Eddoardo subitamente notou terror nos olhos daquele homem, que diziam algo como: uma criança de gaiato aqui?
— Seu pai não está neste navio, menino sapeca!
— E agora comandante? Pois ele me disse... pois ele me disse que pegaria este navio... senhor, creio que vou chorar...
— Houve um contratempo e o senhor Paschoal teve de ser internado; intoxicou-se com sardinhas. Terá de ir conosco, menino sapeca. Vou mandar um pombo avisar seus pais que você está são e salvo. Será a mais longa viagem de sua vida. Vamos, vá brincar com as outras crianças enquanto o Sol não se põe. E não tenha medo, não iremos destratá-lo por causa dessa sua travessura, pequeno Eddoardo.
A noite chegara logo e Eddoardo avistara estrelas, estrelas caindo; era normal quando estava muito triste...as estrelas caíam sem mais nem por quê. Juntou-se a uma mulher sentada num banco. Seu nome era Mme. Úrsula.
— Oi...qual o seu nome, pequeno?
— Eddoardo, o sapeca.
— Qual a data de seu nascimento?
— Faço aniversário em Outubro, mas não me lembro o dia.
— Ah, eu sabia. Talvez um libriano.
— O que é...mas o que é libriano?
— Libra é um objeto que mede o peso da coisas. Libriano vem de libra, balança.
— Quer dizer que sou objeto?
— Seja corajoso, sapequinha. Não se preocupe, seu fado é bom.
— Mama mia! Você fala cada palavra difícil! As estrelas caem quando estou triste. Sabe aquela tristeza mui profunda, de estar só mesmo?
— Ninguém é completamente só. Veja, a partir de agora sou sua amiga.
— Obrigado.
— Por nada.
— Sabia que eu posso ser uma pantera, uma onça gigante preta? Assim olha...ronronron...
— Sabe onde vai dormir? Percebi que entrou de gaiato. Fique no meu quarto. Até mais. E não se esqueça, o número da cabine é 33.
— Ok, boazinha.
Passaram-se vinte e dois dias. Eddoardo estava quase que esquecendo Veneza, seus pais, tudo. Estava alegre. Davam-lhe mil afazeres. Adorava ser garçom, carteiro, cantor, adorava tudo. As estrelas não caíam mais e Bagdá estava próxima, tão próxima que numa manhã bradou, pulando de felicidade: Terra à vista! E iniciou uma dança muito própria, algo frenético. Mme. Úrsula surgiu toda de preto, com jóias lindas, de ouro:
— Estou desde já fascinada!
Bagdá era ouro velho. O comércio, aqueles homens berrando como focas... Ótica, ótica, ótica! Dançarinas em todos os cantos, cobras soltas pelas calçadas, música, cantoria, mantrans... Eddoardo sapecou um diamante, um carbono branco, e Mme. Úrsula deu-lhe um tapa na mão. Eddoardo perdera-se na multidão, e nunca mais, nunca mais a partir daquele momento, quereria ver Mme. Úrsula. Tudo estava acontecendo muito rapidamente, nem sentira que havia sido sequestrado, que alguns homens estavam levando-o para um lugar estranho, uma cela... Ele estrebuchava, e quando o jogaram na cela, proferiu um palavrão proibido.
II
A radiação luminosa da lua entrava no cubículo por uma pequena abertura em forma de ovo. Mme. Úrsula também fora sequestrada e estava junto com o menino. Não se falaram por horas; mas, Mme. Úrsula, rompeu o silêncio.
— Que cativeiro. Enquanto não soltarem um Grão-Vizir detido na Itália, não nos libertarão. O navio estará voltando amanhã e sem nós.
— É mesmo, Ursulinha. Dá vontade de ficar por aqui mesmo.
— Há coisas mais importantes do que nossas vidas para eles.
— Vamos fugir!
— Vá sozinho. Não vou aguentar correr até o navio. Essas minhas piteiras não dão fôlego pra nada, estou condenada. A cidade é grande, mas você terá que se disfarçar; terá que se vestir como os garotos daqui. Ficará andrajoso. Quanto a mim, conheço gente influente em Bagdá. Vim mesmo para ficar. Vamos esperar amanhecer; passarei muito mal, o guarda vai entrar e aí então você escapará como um rato. Vai dar certo! Agora tire suas roupas, preciso fazer algumas reformas.
— Você ficará muito sozinha!
— A solidão não é a pior coisa do mundo. Já me acostumei a ela. Há épocas na vida que as pessoas nos olham de maneira diferente, nos estranham. Talvez seja o estigma.
— Estigma? Que palavra bonita. Mas então essas pessoas que a olham desse jeito devem ser perfeitas.
— Nos suportamos mutuamente. A lei nos dá direitos iguais. Olhe, acabei; vista isso.
Eddoardo ficou parecido com as crianças de Bagdá, as crianças pobres, que andavam esfarrapadas.
— Matéria é Deus cristalizado. Ponha estes anéis. Um no mindinho e o outro no dedo solar.
— Olhe, ficam juntinhos. Tem certas coisas que são tão sozinhas!
— Por exemplo.
— Um sapato furado jogado num canto.
— Faça dele um vaso, invente. Pelo menos ele terá a companhia de algumas mudas.
FINAL
Eddoardo sentiu-se bem com aqueles farrapos. O Sol raiou e iniciou o teatro. O guarda de olhar aquilino pareceu não acreditar quando viu Mme. Úrsula caída no chão e o menino chorando. Agachou-se e tocou o pulso da mulher. Fuja Eddoardo, disse ela. O menino começou a correr, e pensou em voltar, quando de repente ouviu três tiros. Agora era tarde: Mme. estava morta. Aí então começou a chorar de verdade, degringolando num vale de lágrimas. O que fazer? Continuar correndo, correndo e chorando, correndo e chorando, sem parar? Passou por dentro de um mercado de rua, onde havia dançarinas que sorriram para ele. E de súbito percebeu o guarda de olhar aquilino muito próximo. Correu como nunca. Deu uma parada para tirar os sapatos que estavam meio apertados e continuou. Eis que finalmente avistou o navio que estava zarpando...
Depois de quinze dias, num jantar dançante no navio, servindo de garçom, soube que o Grão-Vizir havia sido libertado. Ninguém veio lhe perguntar a respeito do sequestro, se estava bem ou não. Desprezo ou então outra coisa, Eddoardo se ressentiu. What did you want? Aplausos bulhufas.
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