AO VENCEDOR AS
BATATAS1
Daisy Melo
Acordei mais tarde do que o costume. Feriado no Rio de Janeiro. Ai que bom! Escreverei meu texto da quinzena dos Anjos de Prata, "Da solidão das coisas". Solidão, velha conhecida, fácil de se falar. Tirarei do balaio uma mulher daquelas já familiares, sofridas, amargas e largadas. Misturarei com alguma coisa, ódio ou mágoa. A meia de nylon furada, uma bolha no calcanhar, o salto quebrado. O rímel faz caminhos pelo seu rosto, ela chora. Talvez eu borre sua boca com batom.
Mas Vivi volta do seu passeio matinal, entra pela janela do quarto, pula direto na minha mesa. Aconchega sem a menor cerimônia a cabecinha peluda no teclado do computador. "Ora Vivi, larga de ser folgada! Como posso escrever meu texto se você toma para seu descanso, meu Q, o W, o E, o R e ainda capslockeia meus escritos?" Vivi lança-me um olhar de profundo enfado, retira a cabeça e acomoda-se, dessa vez, entre o teclado e o monitor. Tudo bem, as orelhas atrapalham um pouco a visão, mas deixa estar.
No CD, Calcanhoto lembra que "cariocas são bonitos, cariocas são bacanas, cariocas são sacanas, cariocas são dourados, cariocas são modernos, cariocas são espertos, cariocas são diretos, cariocas não gostam de dias
nublados"2 , pombas, assim não dá para escrever sobre solidão, afinal, adoro ser carioca. E tal estado de espírito não combina com coisa solitária.
Vou para a sala e como Caetano. Quer dizer, danço a musica "vamos comer
Caetano"3 sozinha, que nem uma louca. Feliz, liguei para o Marcelo, anjo e tímido, e talentoso como ele só. Temos projetos literários em fase de gestação. Eu, Débora, outra amiga talentosa e empreendedora e ele. Projetos difíceis de serem paridos. Falta tempo, a vida urge coisas que para nós poetas soam absurdamente desnecessárias como comer e pagar as contas. Por falar em comer, hoje o almoço é por minha conta, limpo e tempero o frango, lavo o arroz, pico o quiabo. Débora telefona. Papeamos e trocamos idéias.
E o meu texto? Vamos lá: a mulher solitária e sofrida...mas, o telefone toca de novo. É meu amigo Roberto Sobral poeta e romancista. Lê um parágrafo lindo que escreveu para mim, emocionou, deixou meu coração pequenininho. Contei todas as novidades da cerimônia de entrega dos exemplares "Poemas de Guaratiba". Ouço sua risada gostosa e esqueço que está doente e vai se submeter a um transplante de medula semana que vem. Sua risada me contagia, meu amigo, que bom foi esquecer mesmo que por alguns instantes.
Milton dessa vez, canta:
"As vezes eu quero chorar
mas o dia nasce e eu esqueço
meus olhos se escondem
onde explodem paixões
e tudo o que eu posso te dar
é solidão com vista para o mar
ou outra coisa para lembrar
às vezes eu quero demais
e nunca sei se eu mereço
os quartos escuros pulsam
e pedem por nós
e tudo o que eu posso te dar
é solidão com vista para o mar
ou outra coisa para lembrar
se você quiser eu posso tentar mas
eu não sei dançar
tão devagar para te acompanhar"4
Não impeço, então, que o fantasma do passado atravesse o meu dia. Lembro que nesse mesmo dia, há 13 anos atrás, minha solidão tinha vista para o Cristo Redentor. A solidão tinha forma. Era a própria coisa afiada e pontuda que de madrugada arrebentava meu peito. A solidão tinha cor. Misturava-se ao brilho da lua cheia e tingia meu corpo com sua luz branca como talco. A solidão tinha toque. E se amarfanhava nos meus lençóis. Se eu acarinhasse o outro lado da cama, a via ali dormindo comigo.
E tinha um ruído: os impropérios gritados, na madrugada silenciosa, por Horácio, o louco que morava na rua São Clemente, contra seu inimigo invisível e tão real que lhe falava ao ouvido.
A solidão tinha gosto de martini branco, seco, que eu degustava, em lágrimas, ouvindo a música que martelava ad eternum na minha radio-vitrola.
"all the lonely people
where do they all come from?
all the lonely people
where do they all belong?"5
A solidão tinha um cheiro: Armani e tinha um rosto que arranquei do porta-retratos e escondi em caixas de papelão junto com bilhetes de amor e cartões de Natal.
Preciso pintar meus cabelos descoloridos e terminar o almoço. Mas antes ligo para os meus filhos. Talvez porque o passado ainda não tenha me abandonado totalmente. Talvez para pedir desculpas pela solidão que impediu-me de priorizá-los. E eles eram tão pequenos, tão frágeis. Mas não posso carregar a culpa sozinha, custou-me saber. Ninguém pensou neles, afinal. Um buscando aquela tal felicidade e o outro imerso no seu próprio sofrimento. E as crianças sobraram, vagaram, durante algum tempo, perdidas ali no meio dos nossos umbigos.
Ligo para pedir perdão, ainda que não peça, ainda que só ouça a voz deles. Então João me faz escutar pelo telefone a minha poesia musicada pelo Argento. Pronto! Fiquei de novo emocionada e de novo impedida de escrever sobre solidão. Logo eu que sei tanto dela. "Solidão que
nada"6. Preciso ligar para o Argento e agradecer. Preciso dizer que só uma chegou ao e-mail do meu filho. Tenho que ligar para Helena, minha Anja da guarda e pegar o telefone dele. Mas só depois de escrever meu texto, pois sei que vamos ficar as duas papeando horas no telefone, falando de sonhos e poesias. Sofrimentos e alegrias. E talvez, solidão.
Milton continua:
"Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim,
que perguntar carece
como não fui eu que fiz?
Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor (...)
Calor que invade, arde, queima e encoraja, amor
Que invade arde, carece de cantar"7
Comecei a escrever para desabafar, para dividir minhas madrugadas com mais alguém que não a solidão. Minhas poesias eram como vômitos. Depois passei a escrever para sobreviver. A escrita foi suturando a ferida, me curando a vida.
Pergunto aos meus botões porque demoro tanto a elaborar, a sair do luto? Porque é tão custoso para mim? Minha cunhada, por exemplo, casou-se no mesmo mês em que me separei. A alegria do seu casamento foi nublada pela tristeza do meu divórcio, conta a minha sogra. Hoje ela está no
3º casamento. Admiro a sua firme decisão, lutadora emérita, de ser feliz. E sinto-me um pouco inadequada, bordeline, como se eu me acomodasse à solidão. Por que será?
Talvez eu saiba. Se escrevo para incensar demônios, são necessários demônios a serem incensados. Se a escrita me preenche um vazio, uma fissura, é preciso algo que rompa o furo. "no brain, no pain" disse Elvira, mãe da minha amiga Nancy. "Eu canto porque o instante existe e minha alma está completa. Não sou alegre nem sou triste, sou
poeta"8 cantou Cecília.
O almoço saiu tarde, quase matei minha mãe de fome. Ainda não liguei para Helena e Milton diz que "tenho comigo as lembranças de quem eu
era"9. Agora vou finalmente escrever meu texto: a meia furada da mulher fica bem com uma mini-saia de napa preta. Ela está bêbada. O cabelo, louro desbotado, cai em mechas despenteadas. Ela anda pela madrugada e encontra Horácio, o louco, que grita impropérios para o nada.
Mas o fantasma cisma de invadir meu texto, fantasma bobo, sabe que será exorcizado. Deixo que se manifeste. Ele sussurra no meu ouvido uma frase que nunca esqueci: alguém disse um dia pelo telefone "espero que você consiga transformar esse seu ódio em energia positiva, para o seu bem". Durante muitos anos essa frase doeu pacas porque me senti o próprio cocô do cavalo do bandido. Ela, tão espiritualizada, tão superior (não é mesmo?) e eu tão cheia de mágoa, tão...
cocô. Custou-me muito descobrir que eu tinha o direito de estar magoada, ora essa!, e que para ela foi fácil usar a frase pronta. Pois bem, hoje posso responder: "estou transformando, darling, e só tenho a lhe agradecer".
Notas:
1- Machado de Assis, "Quincas Borba"
2- Adriana Calcanhoto, "cariocas"
3- Idem, "vamos comer Caetano"
4- Alvin L., "Eu não sei dançar", cantado por Milton Nascimento.
5- Lennon/McCartney, "Eleanor Rigby"
6-"Solidão" cantada por Sandra de Sá.
7- Tunai/Milton Nascimento, "Certas Canções"
8- Cecília Meireles, "Motivo"
9- Nascimento/Brant, "Nos bailes da Vida"
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