COISAS
Claudio Alecrim Costa
Os lábios úmidos me beijaram a boca suavemente. Estava quase adormecido e Katia debruçava-se sobre meu corpo suado, com os olhos enormes que espelhavam minha cara disforme. Ela sorria silenciosamente e deixava pesar a coxa quente sobre a minha. Ouvia-se, do velho rádio, sob uma pilha de livros mal arrumada, Hank Jones martelando o piano e o alarido da platéia que vibrava a cada solo do músico. Estiquei o braço e alcancei o copo com vinho.
- Dorminhoco. - murmurou enquanto ria com escárnio.
- Não sei se consigo sair daqui.
- Não saia. Ficaremos deitados e juntos para sempre
Tentei levantar, mas Kátia me impediu com um beijo longo que começou na boca e continuou por todo o meu corpo. Afastei-me e saltei rápido para fora da cama.
- Quer alguma coisa para comer?
- Seria ótimo. Estou faminta.
Espreguiçava-se voluptuosa, deslizando os pés na cama, pronta para ser devorada. Era frágil e assustadoramente sexy.
A cozinha estava um caos. Coloquei os pães na torradeira e fui à geladeira procurar laranjas para o suco.
- Oi!
- Kátia?
- Não. A torradeira.
- Devo ter bebido muito vinho.
- Bebeu mesmo.
- Que diabos! Estou falando com uma torradeira...
- O que foi, meu bem? - Gritou Kátia do quarto.
- Nada, amor...
Encarei a torradeira que esquentava lentamente.
- Essa cozinha é um tédio. Devo estar na menopausa: esfrio e esquento...
- É sua função...
- Não entende de mulheres...
- Que absurdo! Vou desligá-la.
- Vai ter trabalho para desligar aquela lá no quarto...
- Não brinque...
- Você troca de mulheres como quem troca de roupa. Dê um jeito nessa cozinha. Está um lixo.
- Amanhã a empregada resolve isso.
- A empregada não, por favor!
- Por quê?
- Ela já quebrou o liquidificador e a panela de pressão... Estou me sentindo sozinha e deprimida. Posso botar fogo na casa.
- Não! Calma!
- Falou comigo, bem?
- Mande aquela vadia calar a boca...
- Não chame a Kátia de vadia!
- Quem é vadia, meu amor? Venha aqui e eu mostrarei...
- Não disse?
- Tudo bem. Fica fria e me deixe pensar...
- Estou quente!
- Desculpe...
Assustado, corri para o quarto. Kátia queria mais sexo e eu pedi que esperasse um pouco. Era insaciável.
Voltei e continuei a insólita conversa.
- O que posso fazer por você?
- Coloque uma roupa. Estou quente demais, meu bem!
- Engraçadinha...
- Preciso que demita a empregada.
- Nada feito.
- Acho que estou em curto...
- Calma! Eu demito a empregada.
- Ótimo. Conserta o liquidificador?
- Assim já é demais.
- É que estamos noivos.
- Como assim?
- Existe uma eletricidade entre nós, entende?
- Eu vou comprar outro.
- Não faça isso! Estou quente demais!
- Calma, por favor. Eu conserto.
- Combinado!
Peguei os pães, ovos e voltei para o quarto. Tentava remontar o episódio aloucado, enquanto uma idéia não sai de minha cabeça: existiria solidão nas coisas, nos objetos ou o vinho era barato?
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