ACORDES DISSONANTES IV
Beto Muniz

 
 

De repente eu era menino, inocente no gostar, nas ações e nos sentimentos. Noutro instante tomei conhecimento do mundo.

Entre uma melodia triste e outra, papai percebeu o chapéu recolhido, preso por ambas as mãos e pendendo junto ao umbigo. Como sempre ele não abusou das palavras, simplesmente iniciou outra canção e percebi seus olhos abertos, fixos em mim. Mesmo assim não consegui estender o braço e levantar o chapéu em direção aos passantes. Dentro do meu peito uma ausência de luminosidade espantava as paisagens costumeiras e a música que ouvia era só uma melodia pungente, apropriada ao repertório de qualquer pedinte que pretenda percorrer os caminhos da emoção até alcançar a caridade alheia. Trevas! O tempo das paisagens abstratas se formarem nos sentimentos havia passado e restavam apenas os lás e os bemóis em acordes dissonantes na escuridão.

Acompanhei mentalmente a música chegando ao fim e esperei por outra, mas ela não veio. Depois de alguns minutos ouvindo os ruídos dos bares, lanchonetes e cantinas, além dos carros indo e vindo, e vozes dos passantes, o clique característico das travas que fechavam a maleta escura ecoou nos meus ouvidos. Virei meu corpo lentamente e papai estava inclinado sobre a caixa do instrumento guardando criteriosa e carinhosamente o seu saxofone prateado. 

Então eu tremi. Um medo antigo, de anos antes, de sons incompreensíveis, retornou. Eu era um pedinte e deveria pedir, porque então não fizera minha parte se era tão simples e automático levantar o braço segurando o chapéu? Tinha certeza que papai se zangara comigo. O medo estava acordado! Ele estivera dormindo por muito tempo e despertou faminto. Papai estava a dois passos de mim e com apenas um passo tornou-se imenso, gigantesco. No segundo passo sua mão, que deveria pousar na base da minha nuca, veio pela frente, rumo ao meu peito. Penso que encolhi meu corpo sem paisagens e fechei os olhos, no entanto, a agressão não veio. 

Abri os olhos quando senti o chapéu sendo retirado de minha mão. Estranhamente tinha uma cédula dentro. Não vi quando ela foi depositada ali. O gigante diante de mim observou a nota demoradamente, depois guardou no bolso interno do paletó, pegou a maleta com uma das mãos e a outra, finalmente, veio cingir minha nuca. Como sempre. Como uma rédea. Mas a direção que ela me indicava não era a do ponto de ônibus. Sabendo que não era tempo de protestar, segui a ordem pressionada pelos dedos-rédeas.

Entramos num dos bares e papai foi cumprimentado pela maioria dos presentes. Sorriam simpaticamente a cada saudação que ele retribuía, comentavam também sobre minha presença ali, acreditei que me conheciam, e eu a eles, todos, mas não prestei atenção aos comentários. Estava atento não ao local, não aos presentes, mas apenas a que lugar a mão do meu pai ordenava que eu fosse. Uma mesa, vazia, num dos cantos do bar. Sentamos e ele pediu um refrigerante. O calor dentro do terno, seu uniforme de músico, devia ser terrível. Eu suava dentro duma simples camisa. Ele não suava. 

Seu rosto estava seco, impassível. Vez ou outra respondia uma saudação com seu sorriso fácil, que morria tão logo o cumprimento estivesse respondido. Dividimos a bebida em silêncio. Terminamos, ainda em silêncio, papai pagou com a única nota da noite e recebeu troco. Levantou-se, pegou a maleta e minha nuca. Saímos entre sorrisos dos presentes e reiniciamos a caminhada pela noite rumo ao desconhecido. O ponto de ônibus era para o lado contrário, e se distanciava.

Uma grande avenida terminou numa praça também enorme, repleta de bancos. Tudo muito bem iluminado. Lindo. Namorados namorando, policiais policiando, solitários solitariando, tudo em perfeita harmonia. Eu e papai sentamos num dos bancos. Ele tirou o saxofone e começou a tocar num tom baixo, melodicamente triste, porém um triste diferente dos tocados na esquina. Uma música nova, desconhecida para mim. Fosse outro dia ela despertaria a sensação de um campo semeado onde eu ficaria admirando os brotos verdes rompendo a terra vermelha. Entretanto, minhas emoções estavam apagadas e a reação paterna diante da minha falha era uma incógnita embaralhando sentimentos e medos. Trevas! Não houve paisagens dentro de mim, apenas a praça se encheu de saudade de casa e eu olhava para o céu procurando estrelas. Não havia estrelas. Nem fora de mim havia paisagens. Mesmo a praça sumira. A música fluía da solidão das coisas e se perdia no nada. Trevas em mim e sobre a face da terra.

Não posso dizer qual era a melodia, nem quanto tempo durou. Lembro somente que, após seu término, papai ficou com o sax pendurado pela correia ao pescoço enquanto limpava o bocal com a flanela nova. O chapéu na cabeça. A pergunta rompeu o vazio querendo saber o que acontecera comigo. Eu relutei em falar e quando o fiz fui sincero expondo a mágoa de me descobrir um pedinte. Eu não queira pedir. Eu não queria estender o chapéu ao som das músicas tristes tocadas na esquina noite após noite. 

Papai tirou o chapéu, como se o momento fosse solene, e disse que eu não precisaria mais vir com ele se realmente não quisesse. Eu me assustei, não esperava compreensão. Esperava a cobrança de que fizesse minha parte, minha obrigação como membro da família. Pego desprevenido, não consegui segurar a raiva, que nem era raiva, dentro de mim. Percebi o sentimento ruim escapando sem deixar rastro e com ele foi também o medo indefinido que me acompanhou por toda a infância, indo e voltando, dormindo e despertando. Fez-se luz! Eu gostava de ouvi-lo tocando e disse isso, não queria deixar de vir, apenas não queria estender o chapéu para os passantes. O sorriso fácil brotou como se apenas aquilo importasse, como se eu gostar de sua música fosse o maior presente do mundo. Acho que lhe faltaram palavras e o jeito dele foi meter a mão na minha nuca, puxando meu corpo para um abraço tão quente quanto demorado.

De repente, olhando por sobre os ombros do meu pai divisei algumas estrelas. Depois havia milhares delas, todas no céu, onde sempre estiveram. De repente a existência de horizonte, de verticante ou firmamento não importava. De repente eu não me sentia mais um menino e tinha entendimento do mundo, das coisas a minha volta. De repente eu soube ler o pequeno anúncio no encosto do banco. De repente eu não sabia onde estávamos, mas isso não importava, eu confiava em papai e podia falar da minha vergonha na escola, podia soltar meus pensamentos, podia compartilhar minhas dúvidas. 

Então eu disse que todas as músicas me pareciam tristes. Ele olhou em meus olhos como se fosse falar algo, novamente as palavras faltaram e entendi que na verdade ele não era bom nisso, não era bom de conversa. Mas ele entendia o que estava acontecendo comigo, sabia que diante dele a criança digladiava com o homem em formação. Era questão de tempo para o menino deixar de existir. Papai era um artista embrutecido pela vida, mas ainda uma alma sensível. Um homem sem receios de posicionar o sax e tocar uma música alegre para comemorar o adolescer precoce do filho. Várias músicas alegres!

O som encheu a praça, que estava de volta onde sempre estivera. Os namorados ainda namoravam felizes, os policiais policiavam contentes, os solitários sumiram como por encanto. Ninguém me pareceu triste na praça. Os dedos grandes, ásperos e surpreendentemente ágeis de papai saltavam com destreza, pousavam e escapavam novamente para outro botão fazendo brotar um sentimento de sol nascente brilhando sobre folhas orvalhadas, e esta foi a penúltima paisagem em mim.

Nessa noite ele não me carregou quando descemos da lotação. Não nos falamos durante o percurso de volta, mas mesmo em silêncio nós nos fizemos companhia e pela primeira vez eu cheguei em casa sem sono algum. No portão pedi as chaves do meu pai. Tranquei o cadeado e andei rápido, quase correndo, para abrir a porta de casa. Nos olhos de mamãe percebi um brilho de alívio substituindo a aflição pela nossa demora e comentei. Ela respondeu que nunca dormia antes de chegarmos. Foi a primeira informação que recebi depois que deixei a infância.

(continua no próximo tema)

 
 

fale com o autor