QUANDO A ALMA GRITA
Ana Claudia Vargas

Para aqueles nossos iguais que nascem, 
crescem e vivem no escuro,
no vácuo da existência;
para aqueles que morrem 
sem que ninguém sinta falta
é que dedico este texto. 

“Sabe, senhor, minha cabeça fica parecendo que vai explodir: parece que tem um monte de gente gritando dentro dela. E elas urram tão alto que não consigo ouvir mais nada, por isso, grito também. 

Eu gosto é de parar nas esquinas e gritar o que vêm na minha cabeça... O que eu grito? Ah, nome de gente que já morreu e eu não esqueço, o nome da minha mãe que não sei onde tá, nome dos meus irmãos... Vem tudo assim, sabe? Tudo assim esquisito...

O povo diz que eu sou louco e eu devo ser mesmo, né? Como é que as palavras vem? Ah, elas vem assim parecendo só uma imagem: a cara da minha mãe, dos meus irmãos: vem a cara e eu grito o nome. 

Acho que eu queria que eles “estivesse” perto de mim, por isso eu grito: bem alto. Engraçado... sabe o que eu lembro quando eu grito? Daquelas montanhas que “chama” vulcão. É, eu sei o que é um vulcão, sim senhor. 

Um dia eu vi um moço falando lá na porta do bar de onde mandaram eu sair, que aquela montanha que tava passando na televisão era o tal de vulcão: um monte grande de onde saíam umas coisas que pareciam cobras feitas de sangue. Vermelhas e compridas, descendo de cima do morro, uma coisa muito bonita e engraçada. Não fiquei com medo, não senhor, achei foi bonito. De verdade que achei e até quis ver o resto do programa, mas como disse, veio um homem e me mandou sair da porta. Disse que eu estava fedendo. Falou “ sai daqui desgraçado!”, me chamou desse nome feio que a mãe não deixava a gente falar de jeito nenhum quando nós era tudo pequenino e morava lá na roça. 

É, meu pai tinha uma roça mas depois ele quis vir pra cá, pra essa cidade que nem sei como é que chama só sei que é grande pra caramba. Ô se é. Aí a gente foi morar perto de uma fábrica e meu pai começou a beber e ele batia na minha mãe. Batia muito nela, sabe e ela saiu e largou a gente com ele e ele falou que não ia tratar de vagabundo e mandou eu e meus irmãos pra rua e nós todos ficamos uns dias andando nessas ruas sem ter o que comer e eu tinha muito medo, mas meus irmãos não tinham medo não senhor e fizeram um monte de amizade e depois eles começaram a andar com uns homens altos e aí eles falaram que eu não podia ir, que eu era muito pequeno e que eu tinha que ficar lá, e lá era um lugar embaixo de uma ponte e eu fiquei lá com um monte de gente e uma mulher cuidou de mim até morrer. Era boa ela e eu chorei quando ela morreu. 

Acho que eu tinha uns 10 anos. Meu irmão que falava. Isso tudo faz muito tempo, muito tempo mesmo... Eu era pequenininho, agora sou moço. Sei que sou porque outro dia me falaram: falaram que eu devo ter uns 15 anos. 

Então, eu sou moço, né? Eu não estudei não senhor. Nunca fui nesse negócio de escola, é bom? Dizem que é importante, né? 

Eu já roubei pra comer sim senhor. Roubei umas coisas mas aí a polícia veio e me bateu muito e eles só pararam de me bater quando uma senhora passou e pediu assim “pelamordeDeus, cês vão matar ele...”. Aí, desde esse dia, eu escuto esses gritos na minha cabeça. Minha mãe, não voltou nunca mais, não senhor. Tem horas que eu até queria saber onde ela tá, queria que ela me pegasse no colo igual quando a gente morava lá na outra cidade. 

Eu não sei quantos anos faz não senhor, só sei que fiquei só morando daqui pra ali, às vezes sozinho, às vezes com outras pessoas. Não sei como é que eu chamo não... Acho que é Osvaldo. É, acho que é isso. 

Eu acho tudo engraçado: quando o povo corre de mim, quando eles atravessam a rua por minha causa, eu acho que é porque eu sou alguém, né? Porque tem hora que eu acho que eu nem existo, sabe senhor? Eu acho que tudo isso é sonho, por isso eu passo muito tempo dormindo. Eu durmo e acordo, durmo e acordo o dia inteiro. 

Tem dia que saio pra procurar comida de madrugada que é quando a gente pode mexer no lixo que ninguém liga e tem dia que eu fico o tempo inteiro dormindo naquele bancão de uma praça que é cheia de mulher da vida, aí eu acordo de dia e vou procurar comida aí é ruim porque tem muita gente na rua e elas ficam olhando pra mim como se eu fosse um bicho. 

Outro dia, essas mulheres bonitas cheias de coisas coloridas, até falaram que era pra “mim” tomar banho que eu tava fedendo muito aí eu fui no chafariz que tem dentro da praça e me lavei depois eu fiquei secando no sol. 

Até que foi gostoso tomar banho naquele dia, porque, eu não gosto de tomar banho não... Eu não ligo quando o povo fala que eu tô fedendo, eu até gosto. Acho engraçado aí ninguém chega perto e eu posso ficar andando o dia todo até meu pé doer porque aí eu tenho que ficar onde eu estiver e deitar e o povo fica passando e eu fico sonhando acordado. 

É bom, eu gosto, senhor, eu gosto. Então eu fico é só assim mesmo: morando na rua, dormindo debaixo daquelas pontes grandes e vendo tudo de longe. O povo passando, as criancinhas, as moças. Sabe que às vezes eu vejo as pessoas rindo e até queria saber se é bom rir? Será que precisa o quê pra gente rir? Eu até queria saber... Tem dias também que fico ali perto daquele lugar ali na esquina vendo as pessoas saindo e entrando daquela casa bonita: elas vestem umas roupas diferentes e chegam todas nuns carros grandes. 

Acho tão bonito o tal do carro: meu pai quando tava bonzinho, falava que um dia ia comprar um pra gente andar na cidade. Será que um dia ele compra? Eu como só o que eu acho no lixo mesmo. É. Vou lá e mexo e às vezes, bem lá no fundo tem umas coisas gostosas, uns restos de danone, de leite, de maçã, de arroz... tão bom. 

Tem dias que eu não como nada não, porque meus dentes doem muito, e eu fico a noite toda gemendo de dor. Tem dia também que não dá pra andar muito, porque meu pé tá machucado e eu não consigo andar com sapato no pé porque dói e quando ando descalço machuco meu pé em tudo quanto é lugar. Quando é assim eu fico parado e espero sarar. Não senhor, ninguém nunca veio perguntar se eu queria alguma coisa. 

Agora, sabe do que eu mais gosto? É do barulho daquele trem que anda debaixo da terra e que eu não sei o nome. Sei que ele passa zunindo, igual um trovão e eu acho tão bonito. Me dá um frio na barriga. Queria andar naquele bichão, eu queria. 

Outro dia, lá no centro, também vi uma coisa que me deu um negócio esquisito: uma moça tão bonita e ela tava peladinha, senhor, precisa ver como ela era bonita: loira, igual aquela moça que dança na televisão, e ela tinha a bunda grande... eu vi, na capa de uma revista – eu sei o que é revista: é esses "papel" cheio de desenho e retrato de gente. Tem sempre um povo sorridente nestas folhas, umas “moça” sem roupa, outra hora, um povo que tem muito dinheiro. Diz que eles moram aqui nessa cidade que eu moro. É verdade, senhor? Porque eu nunca vi esse povo, então? Eles só existe nessas revistas? Engraçado, né? Eu acho... A boca deles tá sempre arreganhada e eles são tão limpinho que parece que nem existe aqui nesse mundo que eu vivo. Esse povo aí das revistas é um povo engraçado...

Eu acho que eles "vive" em outro planeta. Como é que eu sei o que é planeta? Foi meu irmão que me falou um dia... Isso tem muito tempo. Ele falou assim que planeta é outro mundo que existe no céu e que tem muitos planetas...

Se eu já quis estudar? Às vezes eu até tenho vontade, sabe senhor, mas eu acho melhor mesmo é poder fazer tudo na hora que eu quero, não ter ninguém pra ficar me enchendo o saco... Tem horas que fico olhando pras revistas de mulher pelada, pras propagandas, e aí eu até fico querendo saber o que tá escrito lá... mas, não é sempre não... Prefiro é ficar do jeito que eu tô: eu acho bom saber que eu assusto os outros... Eu acho bom que o povo tudo tem medo de “nós” que mora na rua. Quem mora na rua não tem lei, não senhor. A rua é a minha casa, por isso, a cidade toda é minha: isso não é bom? Eu acho né? Eu acho “da hora”!

Senhor, me dá um trocado “pra mim” comprar um leite? O senhor tem? Ah, brigado hein? Deus que abençoa... Ah? Eu acredito em Deus sim senhor, acho que um dia ele vai me levar pra um lugar bem bonito e eu vou poder comer um monte de chocolate e doce e meu pé e meus dentes nunca mais “vai” doer... e eu também vou poder encontrar com a minha mãe e ela vai me pegar no colo de novo... Eu acho que o céu é assim... Eu acho né, agora, não sei se é verdade... Eu também acho que lá no céu é um lugar onde eu vou poder ser uma pessoa igual às outras: crescer e estudar igual todo mundo e quando eu andar lá na rua do céu as pessoas não “vai” fugir de mim, nem falar que eu tô fedendo... Elas vão até conversar comigo, como o senhor fez agora, e vão até perguntar como é que eu chamo e vão até querer saber da minha vida...

Porque, sabe senhor, eu sou tão sozinho e ando por tanto lugar e o povo nem olha pra mim, e os homens fala que eu sou desgraçado e as mulheres fala assim “ sai daqui seu moleque fedorento!” e as crianças também, tudo corre de mim, e tem hora que de tanto ficar sozinho, eu fico pensando assim: será que eu existo mesmo? 

E é por isso que eu grito bem alto, senhor: é pra ter certeza que eu tô vivo, que eu existo... É isso senhor. Agora dá licença que eu vou lá pr’aquela ponte ali que nós tudo dorme é lá embaixo... Quando eu durmo eu sonho que eu sou gente".

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