RODAPÉ QUE SE NOTA
Regina de Souza
Só quando chove ele não está lá. Fora isso, em qualquer época do ano, quem passar pela
Avenida República do Líbano, no farol antes da curva que leva ao "deixa-que-eu-empurro", terá a grata surpresa de dar de cara com o cara mais iluminado da cidade de São Paulo.
Não sei dele nome, idade ou o que o colocou sobre aquele skate salvador. O que sei é que esse moço trabalha diariamente naquele farol há pelo menos uns 9 anos, desde que iniciei meu trabalho na escola em que leciono até os dias de hoje. Seu apelido bem que poderia ser "Rodapé Que Se Nota" ou "RQSN" para simplificar; não tem as duas pernas e fico imaginando se as tivesse, onde poderia estar.
Sempre que vejo alguém de mau humor ou desanimado por estar enfrentando algum problema, penso no RQSN. Tento também compreender de onde foi que ele tirou aquela alegria toda, a ponto de se estruturar e conseguir ser feliz apesar de não ter suas pernas intactas. Seu tronco é perfeito, bem delineado e elegante, mas elas não estão lá e, mesmo assim, ele caminha com uma segurança invejável sobre suas 4 rodas.
Me chama de "Garotinha" e, do alto dos meus cinqüenta e dois anos, nunca senti qualquer vestígio de falta de respeito por ter sido enquadrada por ele no universo das garotinhas, mesmo porque é exatamente assim que me sinto e nem sei como, mas ele sabe disso.
Entre diálogos fragmentados por aberturas do farol, vamos nos relacionando saudavelmente e disso ele vive. O que sei é que fico preocupada quando ele não está lá e guardo no porta-luvas a quantia que costumo reservar para meu alegre amigo RQSN.
No fundo, ele é como as notas de rodapé que foram criadas por dois eruditos antiquários, como o beneditino francês Jean Mabillon e o jesuíta holandês Papenbroeck como técnicas de crítica documental. Diziam que "o texto convence, as notas provam".
Concluindo: os homens convencem, RQSN prova.
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