NOTA DE RODAPÉ
Raymundo Silveira
"Suicídio Sem Dor", este era o título do livro que o enfermeiro João Vieira comprou num sebo clandestino quando, num sábado pela manhã, decidiu que no dia seguinte à tarde, poria um ponto final na própria vida. Cada capítulo tratava de uma modalidade diferente de se fazer embarcar desta para melhor, mas ele só se interessou por aquela que, segundo ele, lhe era mais familiar
— a injeção de drogas na veia.
Tendo descartado os outros capítulos, leu e releu várias vezes aquele que lhe forneceria um
bilhete de primeira classe naquele vôo só de ida em que ele partiria numa tarde de domingo - exatamente o dia da semana e as horas que lhe pareciam mais insuportáveis de tolerar a dor de viver.
Depois de sair da livraria ele foi ao hospital onde trabalhava e entrou no Centro Cirúrgico. Vivalma. Apanhou meio litro de solução salina, um frasco cheio de um potente anestésico, próprio para cirurgias de longa duração, e dez ampolas de uma droga cujo efeito é semelhante ao curare. Esta substância possui a propriedade de relaxar completamente todos os músculos do corpo, inclusive os que ajudam a respirar, e há muito tempo já era conhecida pelos nossos indígenas que com ela envenenavam as pontas de suas flechas a fim de imobilizar a caça ou o inimigo quando atingidos, tamanho é o seu poder paralisante.
No dia seguinte, entre três e quatro horas da tarde, Vieira adicionou todas as dez ampolas de curare e o conteúdo total do frasco de anestésico à solução salina; pendurou o tubo num armador próximo da sua cama; atou o punho com uma liga de borracha; puncionou com uma agulha uma das veias da mão esquerda com a direita; soltou a liga e a solução começou a pingar. Logo a seguir, Vieira controlou o gotejamento da solução para dentro da sua veia, numa velocidade de dez gotas por minuto
— como costumava fazer nos doentes -, se deitou na cama e decolou.Ou pensou decolar! Os efeitos por ele tão esperados demoraram cerca de 15 minutos para se fazerem presentes; ele estranhou, mas continuou esperando. Vinte e cinco minutos depois do soro instalado, o enfermeiro começou a sentir dificuldade de respirar. Depois de mais cinco já buscava o ar com o esforço de um asmático grave e, pouco mais tarde tentava inspirar desesperadamente. Mas não conseguia.
Depois dos quarenta minutos mais terríveis que permaneceu neste mundo, Vieira morreu. Foram quarenta minutos que equivaleram à eternidade do inferno. Cada tentativa de respirar era um esforço inútil; surgiram tosse apertada, sibilos de asfixia, ânsias, paradas respiratórias intermitentes, enfim, era como se ele tivesse sido enforcado lentamente durante quase três quartos de hora, sem nada poder fazer para evitar. Tudo isto só aconteceu porque Vieira negligenciou a leitura de uma nota de rodapé do capítulo do
livro.[1]
[1] "Atenção! Deixe o líquido correr livremente em sua veia; não faça nenhum controle da velocidade de gotejamento".
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