ANJOS
NO RODAPÉ
Mairy Sarmanho
Não despertem os monstros que se escondem, cansados, nas entrelinhas do diário de nossas vidas!... Deixem-nos descansar, fechando seus olhos chamuscados de esperança, enquanto a noite não chega. Permita-os dormir em paz, calejados de tanta dor e sofrimento, enquanto ressonam seu mau-humor habitual. Monstros têm alma, sim, costumam sonhar com nossos desentendimentos e rancores que são os efetivos alimentos de seus espíritos indecorosos.
Não despertem, também, os anjos que descansam, impúberes e impunes, no rodapé do diário de nossas existências tão humanas, tão pecadoras, tão insolentes. Deixem-nos descansar, protegidos por suas delicadas asas de papel crepom, lacrando seus doces olhos de azul inocente, cansados de torcer a nosso favor, temerosos com nosso destino, enquanto a manhã não vem... Permita-os ficar em paz, desfrutando de seus próprios ideais idílicos, reconstruindo a imensa teia de esperança com a qual nos protegem e guiam, na maior parte das vezes, em vão. Anjos têm fraquezas, sim, sentimentos minúsculos de vingança, raiva e sadismo, porque se contaminam com nossas emoções humanas.
Assim, não abram o diário de nossas vidas, agora: deixem-no abandonado na estante para não sofrerem com remorsos e despertar, covardemente, anjos e monstros de nossas existências tolas e equivocadas. Deixem para amanhã, na revisão da vida, quando teremos de prestar contas de cada ato, cada acerto ou erro cometido ao implacável juiz-contador-final. Ali teremos a companhia de anjos e monstros e só então saberemos, com certeza, a dimensão que cada um deles assumiu em nossas vidas. Não toquem nem abram a imensa e dolorida caixa de pandôra que se chama passado! Deixe-nos em paz. Por enquanto...
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