VIVENDO
EM REPÚBLICA - REGULAMENTO*
Fábio Fujita
A partir da presente data, para a maior comodidade, harmonia e trânsito entre os convivas de qualquer república - espaço físico que, por coincidência ou não, costuma reunir sob o mesmo teto estilos de personalidade como as de Sandy, Patropi e Maguila -, ficam estabelecidas as seguintes normas de conduta, a saber:
Artigo I - Banheiro
Parágrafo I - das obviedades
Banheiro, como se sabe, é um ambiente de mão única: aqui, tudo o que se abre, não é necessário ser fechado. Exemplos básicos: pasta de dente e pote de gel para cabelo. Exemplo avançado: a torneira.
Parágrafo II - das alegrias
Cabelo na pia é sempre bem-vindo, bem como restos de barba e outros desdobramentos capilares. Afinal, com o ralo entupido, é muito divertido ver a água demorar para escorrer e, concordando com o poeta, é melhor ser alegre que ser triste.
Parágrafo III - das soluções práticas
Ninguém é obrigado a comprar sabonete, shampoo ou pasta de dente, quando estes acabam. A solução, nestes casos extremos, é aguardar. Geralmente eles se materializam no banheiro algum tempo depois. A regra tem efeito dobrado com relação ao papel higiênico, já que este, como se sabe, é perfeitamente substituível por guardanapos, ou por expedientes criativos inventados na hora pelos convivas. Se o papel higiênico vier depois, é lucro.
Parágrafo IV - dos deveres
Ainda que não tenha se verificado no último decênio, a troca da toalha de rosto é, sim, obrigatória.
Parágrafo V - das não-mutações
Os limites do saquinho plástico de supermercado são exatamente os mesmos de quando utilizados como saquinhos de lixo do banheiro. Mas ninguém é obrigado a saber disso.
Parágrafo VI - do recolhimento
Recolher o lixo do banheiro é tarefa, evidentemente, do próximo.
Parágrafo VII - da limpeza
Nada consta.
Artigo II - Cozinha
Parágrafo I - da louça
Algum dos convivas deverá lavar a louça suja. Sem dúvida alguma.
Parágrafo II - da auto-limpeza
Os restos de comida deixados na louça podem ser despejados diretamente na pia. Na verdade, não deveriam, mas por se tratar de um conhecimento muito elaborado - o improvável entupimento do ralo com a meia coxa do frango que um conviva não comeu -, fica liberado o despejo direto. Especialmente por parte do conviva que, por ir dormir assim que deixa a sala de jantar, invariavelmente esquece de ir na cozinha ver como a louça se auto-limpa para o dia seguinte.
Parágrafo III - da inércia
Variação do Artigo I do Parágrafo I, aqui tudo o que se derrama, deve ser deixado como ficou. Exemplos básicos: açúcar na mesa para o acúmulo de formigas e groselha na toalha limpa. Exemplo avançado: o pirex novinho que caiu e espatifou atrás da geladeira.
Parágrafo IV - das opções
Se um pano de prato já está sendo utilizado, vale a pena sujar um segundo. Afinal, nada melhor do que ter opções para enxugar a louça.
Parágrafo V - dos pingos nos is
O parágrafo IV é ridículo e deve ser desdenhado, porque se a louça não precisa ser lavada, que dirá enxugada.
Parágrafo VI - da lógica
Se todos os copos limpos estão sujos, e não irei lavar um exemplar para beber minha água, passarei sede.
Parágrafo VII - da limpeza do fogão
Nada consta.
Parágrafo VIII - da retribuição
Se fervi uma água, hoje, para fazer miojo para todos, posso exigir dos demais convivas lasanha, yakissoba, purê de batatas e carpaccio pelo restante da semana, afinal, "eu fiz a minha parte".
Parágrafo IX - das propriedades
Chambinhos, amanditas e outros quitutes por você comprados e guardados para posterior consumo, passam naturalmente ao âmbito do domínio público. E cara feia, pra mim, é fome, portanto, trate de ir comer amanditas e não me encha a paciência.
Artigo III - Sala
Parágrafo I - da mesa de centro
Como a metáfora por definição do espaço de convivência, a mesinha de centro deve reunir o maior número de restos de polvilho, xícaras com café endurecido ao fundo e refeições rápidas interrompidas (meio sanduíche, o leite do sucrilhos derrubado, etc.). Sociabilidade, sempre.
Parágrafo II - da democracia
Sérgio Mallandro é tosco? Sim. Avallone é ridículo? Naturalmente. Mas se estas forem as preferências dos convivas (em esquema maioria simples - 50% + 1), elas devem prevalecer no quesito Programação da TV 14 polegadas.
Parágrafo III - da intolerância
Se os convivas de uma república tiverem TV a cabo - o que é improvável, porque são duros - e estiver passando no Eurochannel qualquer filme do Ettore Scola, este deve ter a preferência da televisão, independente do parágrafo supracitado. A democracia que se foda, neste caso.
Parágrafo IV - da atração
Pés imundos sobre o sofá branco são elementos que naturalmente se atraem, portanto, não há nada a se fazer a respeito.
Parágrafo V - da democracia
Varrer a sujeira para debaixo do tapete não é exclusividade do desenho da Pantera Cor de Rosa.
Artigo IV - Considerações finais
Parágrafo I - dos economias
Com vistas à contenção de despesas, é importante lembrar de apagar todas as luzes. Quando não lembrar, tudo bem, que fiquem acesas, mas só nestes casos.
Parágrafo II - do quarto do outro
Interaja com o conviva. Procure se espelhar no quarto dele para organizar o seu, a não ser que você seja quadrado e não ache legal o lance do punk-anarquismo estético.
Parágrafo III - dos objetos perdidos
Se você perdeu algo e não o encontra de jeito nenhum, o primeiro local a ser vasculhado é a pilha de roupas imundas do conviva imediato. Depois, a pilha de roupas sujas do segundo conviva. Uma terceira tentativa é procurar na geladeira, na seção dos pepinos. Em república, é natural a harmonia entre inanimados de espécimes distintas. Combinações como aspirador de pó/gelatina de limão, cueca suja/antena parabólica e CD dos Titãs/desdobramentos capilares enroscados na pia não são de todo disparatadas.
* Este regulamento, universal, perde o efeito SOMENTE para aqueles que optarem por seu descumprimento.
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