ACORDES DISSONANTES III
Beto Muniz

 
 

De repente eu era menino, inocente no gostar, nas ações e nos sentimentos. Noutro instante tomei conhecimento do mundo. Soube da vida, e das sucessões de imprevistos que nos obrigam a tomar decisões num moto-contínuo. Essa descoberta está impressa no meu passado, é ela quem marca a fronteira entre o menino e o homem.

Dormi na volta para casa. Penso que não foi nenhuma dificuldade para papai carregar o saxofone e eu, pois ele era extremamente grande e forte. Pela manhã acordei e estranhei não ver minha irmã dormindo na cama ao lado. Não fiz perguntas, imaginei respostas. No decorrer do dia mamãe permaneceu abstraída com seus afazeres e no meio da tarde me levou novamente para a casa da vizinha e seu filho simpático. 

Assim que ela sumiu na esquina nevou outra vez em meu coração. Eu quis enxergar as pegadas do meu medo, mas ele não veio passear. Era apenas a neve, a sensação de estar sozinho no mundo, como no dia anterior. Dessa vez uma certeza de que no final da tarde papai viria me pegar acalmava meus medos. 

Ele veio. Fomos novamente para a esquina onde as pessoas que passavam pagavam para a música de papai às acompanhar sumindo pelas portas ou na noite. Eu me encantava segurando o chapéu estendido para frente e para cima. Depois de alguns minutos o chapéu pesava, passadas poucas horas meus músculos de menino doíam mas eu temia baixar o braço e fazer cessar a música. Horas depois, o chapéu tremia na ponta do meu braço como se dançasse a música que encantava a mim e a todas aquelas pessoas que passavam. Valia a pena agüentar a dor. E eu agüentei. Na volta para casa, dormi.

Ser deixado na vizinha foi coisa que se repetiu por alguns dias, até que numa manhã acordei com minha irmã deitada na cama ao lado. Descobri a origem do deserto sem areias que havia substituído a neve em meu peito no decorrer das tardes divididas com o vizinho. Corri e a abracei. O deserto — uma espécie de saudade misturada a receios incompreensíveis, foi sendo substituído no peito pela sensação de alívio. O deserto ganhou oásis, inúmeros, e foi formando uma paisagem verde e florida que traduzia bem a alegria quente, palpável, emanando da pele febril e entrando em mim através dos meus dedos e correndo direto para o coração. 

Ela tossiu levemente e me deu um beijo, e só então olhei dentro de seus olhos. Pareceu-me que ela estava muito triste. Aliás, penso que naqueles dias todas as coisas me pareciam melancólicas, e minha irmã muito mais, já que eu não sabia identificar uma pessoa doente, convalescendo, senão como uma pessoa triste e deprimida. Mas sosseguei minhas emoções ao perceber que ela não tossia tanto quanto dias antes, e a felicidade se completou quando soube que não precisaria dividir minhas horas do dia com os vizinhos simpáticos até que papai chegasse.

Em meados dos meus sete anos estava acostumado a segurar o chapéu de papai até tarde da noite. Meus músculos infantis não doíam mais, e eu aprendera a mudar o chapéu de mão quando um braço começasse a cansar. Decorei os detalhes do caminho percorrido pela lotação. Sabia quantos cruzamentos, quantos semáforos, quantas paradas, onde e quantos passageiros entrariam. Sabia muita coisa do percurso, inclusive quando era a hora de sentar no colo de papai para caber mais gente na lotação. 

Não sabia contar além de dez, porém reiniciava a contagem quando me acabavam os dedos das mãos. Tive dificuldades para aprender a seqüência dos números e antes de começar os estudos, por mais que alguém tentasse ajudar, eu me perdia nas contagens. Aos dois anos eu sabia contar até dois, e só fui aprender que o três era o número seguinte após fazer aniversário, aos quatro anos aprendi seqüênciar do um ao quatro, aos cinco acrescentei o cinco na seqüência e assim sucessivamente, até completar sete anos e começar os estudos. No meio do ano sabia contar até dez usando os dedos das mãos e até vinte se utilizasse lápis e paciência. 

Mesmo com toda essa dificuldade, estava aprendendo a fazer contas. Tinha facilidade com atividades manuais e inventava muitas histórias, gostava da sala de aula, de aprender. No entanto, penso que o conhecimento me trouxe dissabores. Se no início do ano fui matriculado, no final do ano meu encantamento foi mutilado. Crianças são extremamente cruéis e fazem questão de exercer essa crueldade contra outras crianças, como se vingassem todas as tiranias dos adultos.

Eu não era um pedinte! E explicava que acompanhava as apresentações de papai, que era músico e tocava tão bem que as pessoas pagavam para ouvi-lo. As melodias tristes estavam todas na minha cabeça, cada qual me despertava uma emoção diferente. Se antes todas me deixavam com a sensação de chuva sem água, agora tinha também as sensações de mares sem portos, canyons de abismos eternos, céus noturnos e vôos entre nuvens. Ouvi-las despertavam vontades de correr, de dizer coisas bonitas, de abraçar minha irmã, beijar mamãe. No primeiro acorde eu já sabia qual era a música e mentalmente antecipava suas notas, uma por uma, até o fim. Se papai permitisse, eu poderia facilmente executar qualquer da melodias, de tanto que já as conhecia. Infelizmente não me era permitido sequer encostar a mão no saxofone. Meu irmão certa vez explicou o cuidado excessivo com o instrumento: Papai jamais teria condições de comprar outro igual se aquele se quebrasse. Uma única vez eu tive permissão para assoprar exatamente como papai fazia. Vendo-o parecia fácil, mas não consegui tirar som algum. Perceber a dificuldade que era transformar sopro em música só fez crescer a admiração que já sentia. E todo esse encanto foi destruído na escola.

Ser chamado de pedinte, confundido com mendigo, lançou ao chão o orgulho acumulado noite após noite dentro de mim. Foi um ruir silencioso, de lágrima segurada dentro do olho, de coração apertado e tristeza maior e mais pesada que a mochila cheia de livros. Naquela noite eu conferi as pessoas passando e adaptando seus passos ao ritmo tristonho imposto pelo saxofone. Pela primeira vez percebi que papai tocava de olhos fechados. O tempo todo seus dedos, pulmões e bochechas em ação, enquanto os olhos seguravam uma introspecção concentrada. Papai não estava ali. Ele estava a milhões de anos luz, flutuando entre as estrelas exatamente como na sensação que a música tocada naquele momento despertava em mim. Por isso ele precisava de meu irmão, depois de minha irmã, e finalmente de mim ao seu lado. 

Éramos necessários para arrecadar moedas e cédulas enquanto ele sublimava em seu dom. Sua mágica era transmutar musica para dinheiro, a minha era sustentar o chapéu estendido para frente e para cima. Éramos pobres, isso eu já sabia, mas só então meus olhos se abriram e enxerguei a realidade com todos seus sinais. Naquele instante tomei conhecimento do mundo, tive entendimento para ler os termos que estabeleciam nossa condição de vida. Ainda não sabia ler os livros da escola, mas o texto em minha alma se fazia entender perfeitamente, e lá no rodapé dos sentimentos, em letrinhas miúdas, as consoantes do amor casavam com as vogais do ódio escrevendo palavras relacionadas a perdão e miséria no meu coração. 

Entendi que os transeuntes pagavam para ouvi-lo tocar, sim, mas não era só pela música. Era também por compaixão, solidariedade com aquele pobre homem, coitado, tocando na esquina acompanhado do filho, coitadinho, um negrinho mirradinho de olhos grandes e brilhantes refletindo suas emoções transformadas em paisagens. Eu era uma figura linda, penso, um pequeno encantado, um menino inocente no gostar, nas ações e nos gestos. Minha presença contribuía consideravelmente para que as moedas fossem lançadas no chapéu.

Papai tocava de olhos fechados e por isso não notou a transformação em mim. Meus olhos já não brilhavam, meu principal gesto perdera a inocência, eu tomara conhecimento de nossa condição na sociedade e esta descoberta estava sendo impressa em mim demarcando a fronteira entre o menino e o homem. Tocando de olhos fechados papai não percebeu que naquela noite eu estava em conflito entre odiá-lo e perdoá-lo, e enquanto não me decidia também não conseguia estender o chapéu.

(continua no próximo tema)

 
 

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