De repente
eu era menino, inocente no gostar, nas ações e nos sentimentos. Noutro
instante tomei conhecimento do mundo. Soube da vida, e das sucessões de
imprevistos que nos obrigam a tomar decisões num moto-contínuo. Essa descoberta
está impressa no meu passado, é ela quem marca a fronteira entre o menino
e o homem.
Dormi na volta para casa. Penso que não foi nenhuma dificuldade para papai
carregar o saxofone e eu, pois ele era extremamente grande e forte. Pela
manhã acordei e estranhei não ver minha irmã dormindo na cama ao lado.
Não fiz perguntas, imaginei respostas. No decorrer do dia mamãe permaneceu
abstraída com seus afazeres e no meio da tarde me levou novamente para
a casa da vizinha e seu filho simpático.
Assim que ela sumiu na esquina nevou outra vez em meu coração. Eu quis
enxergar as pegadas do meu medo, mas ele não veio passear. Era apenas
a neve, a sensação de estar sozinho no mundo, como no dia anterior. Dessa
vez uma certeza de que no final da tarde papai viria me pegar acalmava
meus medos.
Ele veio. Fomos novamente para a esquina onde as pessoas que passavam
pagavam para a música de papai às acompanhar sumindo pelas portas ou na
noite. Eu me encantava segurando o chapéu estendido para frente e para
cima. Depois de alguns minutos o chapéu pesava, passadas poucas horas
meus músculos de menino doíam mas eu temia baixar o braço e fazer cessar
a música. Horas depois, o chapéu tremia na ponta do meu braço como se
dançasse a música que encantava a mim e a todas aquelas pessoas que passavam.
Valia a pena agüentar a dor. E eu agüentei. Na volta para casa, dormi.
Ser deixado na vizinha foi coisa que se repetiu por alguns dias, até que
numa manhã acordei com minha irmã deitada na cama ao lado. Descobri a
origem do deserto sem areias que havia substituído a neve em meu peito
no decorrer das tardes divididas com o vizinho. Corri e a abracei. O deserto
— uma espécie de saudade misturada a receios incompreensíveis, foi sendo
substituído no peito pela sensação de alívio. O deserto ganhou oásis,
inúmeros, e foi formando uma paisagem verde e florida que traduzia bem
a alegria quente, palpável, emanando da pele febril e entrando em mim
através dos meus dedos e correndo direto para o coração.
Ela tossiu levemente e me deu um beijo, e só então olhei dentro de seus
olhos. Pareceu-me que ela estava muito triste. Aliás, penso que naqueles
dias todas as coisas me pareciam melancólicas, e minha irmã muito mais,
já que eu não sabia identificar uma pessoa doente, convalescendo, senão
como uma pessoa triste e deprimida. Mas sosseguei minhas emoções ao perceber
que ela não tossia tanto quanto dias antes, e a felicidade se completou
quando soube que não precisaria dividir minhas horas do dia com os vizinhos
simpáticos até que papai chegasse.
Em meados dos meus sete anos estava acostumado a segurar o chapéu de papai
até tarde da noite. Meus músculos infantis não doíam mais, e eu aprendera
a mudar o chapéu de mão quando um braço começasse a cansar. Decorei os
detalhes do caminho percorrido pela lotação. Sabia quantos cruzamentos,
quantos semáforos, quantas paradas, onde e quantos passageiros entrariam.
Sabia muita coisa do percurso, inclusive quando era a hora de sentar no
colo de papai para caber mais gente na lotação.
Não sabia contar além de dez, porém reiniciava a contagem quando me acabavam
os dedos das mãos. Tive dificuldades para aprender a seqüência dos números
e antes de começar os estudos, por mais que alguém tentasse ajudar, eu
me perdia nas contagens. Aos dois anos eu sabia contar até dois, e só
fui aprender que o três era o número seguinte após fazer aniversário,
aos quatro anos aprendi seqüênciar do um ao quatro, aos cinco acrescentei
o cinco na seqüência e assim sucessivamente, até completar sete anos e
começar os estudos. No meio do ano sabia contar até dez usando os dedos
das mãos e até vinte se utilizasse lápis e paciência.
Mesmo com toda essa dificuldade, estava aprendendo a fazer contas. Tinha
facilidade com atividades manuais e inventava muitas histórias, gostava
da sala de aula, de aprender. No entanto, penso que o conhecimento me
trouxe dissabores. Se no início do ano fui matriculado, no final do ano
meu encantamento foi mutilado. Crianças são extremamente cruéis e fazem
questão de exercer essa crueldade contra outras crianças, como se vingassem
todas as tiranias dos adultos.
Eu não era um pedinte! E explicava que acompanhava as apresentações de
papai, que era músico e tocava tão bem que as pessoas pagavam para ouvi-lo.
As melodias tristes estavam todas na minha cabeça, cada qual me despertava
uma emoção diferente. Se antes todas me deixavam com a sensação de chuva
sem água, agora tinha também as sensações de mares sem portos, canyons
de abismos eternos, céus noturnos e vôos entre nuvens. Ouvi-las despertavam
vontades de correr, de dizer coisas bonitas, de abraçar minha irmã, beijar
mamãe. No primeiro acorde eu já sabia qual era a música e mentalmente
antecipava suas notas, uma por uma, até o fim. Se papai permitisse, eu
poderia facilmente executar qualquer da melodias, de tanto que já as conhecia.
Infelizmente não me era permitido sequer encostar a mão no saxofone. Meu
irmão certa vez explicou o cuidado excessivo com o instrumento: Papai
jamais teria condições de comprar outro igual se aquele se quebrasse.
Uma única vez eu tive permissão para assoprar exatamente como papai fazia.
Vendo-o parecia fácil, mas não consegui tirar som algum. Perceber a dificuldade
que era transformar sopro em música só fez crescer a admiração que já
sentia. E todo esse encanto foi destruído na escola.
Ser chamado de pedinte, confundido com mendigo, lançou ao chão o orgulho
acumulado noite após noite dentro de mim. Foi um ruir silencioso, de lágrima
segurada dentro do olho, de coração apertado e tristeza maior e mais pesada
que a mochila cheia de livros. Naquela noite eu conferi as pessoas passando
e adaptando seus passos ao ritmo tristonho imposto pelo saxofone. Pela
primeira vez percebi que papai tocava de olhos fechados. O tempo todo
seus dedos, pulmões e bochechas em ação, enquanto os olhos seguravam uma
introspecção concentrada. Papai não estava ali. Ele estava a milhões de
anos luz, flutuando entre as estrelas exatamente como na sensação que
a música tocada naquele momento despertava em mim. Por isso ele precisava
de meu irmão, depois de minha irmã, e finalmente de mim ao seu lado.
Éramos necessários para arrecadar moedas e cédulas enquanto ele sublimava
em seu dom. Sua mágica era transmutar musica para dinheiro, a minha era
sustentar o chapéu estendido para frente e para cima. Éramos pobres, isso
eu já sabia, mas só então meus olhos se abriram e enxerguei a realidade
com todos seus sinais. Naquele instante tomei conhecimento do mundo, tive
entendimento para ler os termos que estabeleciam nossa condição de vida.
Ainda não sabia ler os livros da escola, mas o texto em minha alma se
fazia entender perfeitamente, e lá no rodapé dos sentimentos, em letrinhas
miúdas, as consoantes do amor casavam com as vogais do ódio escrevendo
palavras relacionadas a perdão e miséria no meu coração.
Entendi que os transeuntes pagavam para ouvi-lo tocar, sim, mas não era
só pela música. Era também por compaixão, solidariedade com aquele pobre
homem, coitado, tocando na esquina acompanhado do filho, coitadinho, um
negrinho mirradinho de olhos grandes e brilhantes refletindo suas emoções
transformadas em paisagens. Eu era uma figura linda, penso, um pequeno
encantado, um menino inocente no gostar, nas ações e nos gestos. Minha
presença contribuía consideravelmente para que as moedas fossem lançadas
no chapéu.
Papai tocava de olhos fechados e por isso não notou a transformação em
mim. Meus olhos já não brilhavam, meu principal gesto perdera a inocência,
eu tomara conhecimento de nossa condição na sociedade e esta descoberta
estava sendo impressa em mim demarcando a fronteira entre o menino e o
homem. Tocando de olhos fechados papai não percebeu que naquela noite
eu estava em conflito entre odiá-lo e perdoá-lo, e enquanto não me decidia
também não conseguia estender o chapéu.
(continua
no próximo tema)
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