REALEJO
Regina de Souza

"Estou vendendo um realejo, quem vai levar?..."- cantava Chico, lá pelos idos de 1967. Muito antes disso, exatamente em 1934 - uma garota de 15 anos não resistiu à magia daquele som - sinônimo da esperança no futuro e saiu correndo, arrastando pela mão direita uma amiga inseparável. Eufórica, apertando na outra mão o dinheiro que alimentaria seus sonhos por anos a fio, observou o papagaio retirar um papelzinho azul claro. Seguiu os movimentos da mão do homem que foi retirando com cuidado o papel do bico da ave; depois, embalada pela música maravilhosa que se iniciou, grudou os olhos nas letras miúdas e leu em voz alta com a amiga:

"És franca e temes as falsidades, pois pensas que todos são iguais a tí. Tens bom coração e te casarás com alguém vindo de muito longe, a quem amarás de todo coração. Terás cinco anjinhos que te alegrarão a vida junto ao ser amado e viverás até os 78 anos. Serás muito feliz e concretizarás tuas idéias. Terás sorte com o número 24681".

Os dias transcorreram velozes e 8 anos depois, ela conheceu aquele que veio de muito longe para ser seu companheiro para o resto de sua vida. Casaram-se e, após alguns anos de luta e cumplicidade, tiveram a primeira filha exatamente no dia do aniversário dele - 2 de setembro. 

A partir desse ano, esse dia era comemorado em dobro. Passados dois anos - para surpresa de todos - outra menina chegou também no dia 2 de setembro, alegrando mais ainda a festa da família. Agora, eram três os cantos iluminados num mesmo bolo, já que o número de velas aumentava a cada ano.

Mais três meninas vieram completar os "cinco anjinhos" previstos na sorte do realejo; obviamente não todas no tal dia 2 de setembro, mas todas sob o signo dele -virgem- ou sob o dela -escorpião. 

Filhos criados, trabalho dobrado. Entre cinco filhas, quatro genros e seis netas, o casal passava os Domingos, no entra-e-sai de anos que os aproximam da velhice. 

E pensar que durante todo esse tempo, aquela menina que correu em disparada na direção do realejo foi confirmando aos poucos as previsões contidas no papel azul clarinho: casou mesmo com alguém vindo de muito longe, teve mesmo cinco anjinh(a)s (endiabradas, tá certo!...mas, cinco!). Agora, só faltava aguardar a chegada do seu 78º aniversário, claro.

A cada ano, mais ela se afligia com a proximidade do fim. No dia em que completou 78 anos, apagou todas aquelas velinhas com a sensação nítida de que seriam as últimas. 

Depois da festinha, foi se deitar e custou a dormir. De cansaço e aflição pegou no sono e, pela manhã, acordou incrédula... abriu bem os olhos tentando encontrar o marido que já havia falecido há alguns anos, afinal, estaria ela já em algum outro plano espiritual, só podia! Mas, não. Estava viva e bem viva! Só aí se deu conta de algo que nunca antes havia pensado: ela poderia deixar este mundo em qualquer um dos 365 dias que comporiam seus 78 anos.

E dia-a-dia aquela mulher acordou agradecendo a Ele por mais uma chance de estar viva e fazer tudo que lhe fosse permitido. 

Assim ela viveu , até o dia em que completou 79 anos; como no ano anterior, apagou todas aquelas velinhas com a sensação nítida de que seriam as últimas. 

Depois da festinha foi se deitar e custou a dormir. De cansaço e aflição pegou no sono e, pela manhã, acordou incrédula... abriu bem os olhos, tentando encontrar o marido que já havia falecido há alguns anos, afinal, estaria ela já em algum outro plano espiritual, só podia! Mas, não. Estava viva e bem viva! Só aí se deu conta de algo que nunca antes havia pensado: "coincidências existem, até na sorte do realejo".

Hoje, minha mãe tem 83 anos, vamos comemorar seu 84º aniversário no próximo mês e dia-a-dia acordo agradecendo a Ele por ter criado as coincidências. 

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.