PRESENTE DE ANIVERSÁRIO
Luciana Priosta

- Oi, ah... oi. Ããã... oi. Eu tô aqui porque resolvi me dar um presente sabe? De aniversário... Faz tempo que todo me diz: se dê esse presente, você vai se encontrar, garota. Bom, então estou aqui. Ããã... Bom. Sabe filme de fantasma? Então. Fantasma mesmo, sabe? Com alguém geralmente bem morto vindo do além para dizer ou pedir algo para alguém geralmente bem vivo? Fantasma morando e assombrando lugares de aparência sinistra, com direito a tempestade e todos os clichês afins? E a musiquinha, aquela sabe? Como falar sobre música, ainda mais aquela musiquinha? É como dançar sobre arquitetura. É. Já ouvi isso em algum lugar. Mas a musiquinha é aquela que você ouve e já sabe que o fantasma vai aparecer. E assusta-se mesmo assim. E claro, não poderia faltar, voz de Darth Vaider saindo das bocas mais angelicais, só para chocar. Pelo contraste. E por quais diabos o mocinho tem sempre que querer entrar naquele sótão/porão/quarto/beco/qualquerlugar escuro feito noite de apagão? Porque se ele não entrar lá não tem susto, não tem fantasma, não tem filme, eu sei, eu sei. Mas POR QUE? Pois bem. Tive um sonho que pode ser considerado clássico no gênero. Contar os sonhos é bom começo me disseram. Veja bem. Que fique claro que eu jamais me permitiria sonhar com Jaisons, Freds e pânicos afins. Lixo. To falando de fantasma mesmo! Sinta só o clima e veja se não tenho razão. A mulher sentada à escrivaninha. Não se pode adivinhar se está triste, feliz ou com dor de barriga. Olha sem ver a tela do lap top a sua frente perdida pelo labirinto da própria alma sem nenhuma Ariadne para lhe estender o novelo. E nem me venha com interpretações freudianas de mitos gregos que de complexo de Ariadne eu nunca ouvi falar. O homem engravatado fala ao celular enquanto despacha a secretária com um abanar de mãos. Termina a ligação. Prepara-se para uma vídeo conferência. Uma reunião importantíssima. Oi amor. A mulher agora chora diante do lap top. De raiva. Não pode acreditar no que esta acontecendo. Mas amor! Bé, bé, bé. Como assim quer o divórcio? Por vídeo conferência?! Já imaginou algo parecido? Divórcio por vídeo conferência? Só isso já dá um filme de terror. Pelo menos dá para ver a cara do patife por vídeo conferência. Pior seria pela WEB. Faça um download das crianças se pretende voltar a vê-las! Voltemos ao sonho que até agora não teve fantasma algum. Tenha paciência. Já disse que é minha primeira vez? Então. A mulher está a ponto de entrar pela tela do lap para estrangular o já ex-marido do outro lado. Sua filha entra no escritório. Sente só. Quando a filha abre a porta o ar no escritório torna-se pesado, denso. Sua filha é linda, delicada, esguia. E quando abre a boca para falar com a mãe, adivinha só? Darth Vaider! E ela diz. Ou ele diz. Mate-o! Mate-o! Traga-o para o lado negro! Não, não. Isso foi por minha conta. Ri, ri, ri. Ela apenas diz para matá-lo. E a mãe: o que? E a filha: o que, o que? E mãe: isso aí ó! E a filha: isso aí o que ó? Comunicação perfeita entre mãe e seu rebento. Isso aí ó! Essa voz! Você quer matar seu pai? Não mãe, pirou? A moça faz faculdade de moda. Tem pelo menos umas 500 fivelas de borboletinhas na cabeça. As borboletinhas começam a bater as asas nervosas. Ri, ri. Eu disse que era sonho? As borboletinhas nervosas alçam vôo e carregam a moça pela janela. Antes que a mãe tenha tempo de esboçar qualquer reação sua filha se espatifa na calçada láááááá em baixo. Mas é mentira. A filha ainda está diante dela com uma cara estranha. A mãe pisca os olhos com força e pensa seriamente em retomar o lexotan. Está delirando, com toda certeza. Nisso entra: tã nam! Eu! E não me olha assim com essa cara de arrá! Síndrome de Jesus Cristo! Eu nunca vi mais gorda nenhuma das duas. E, não, elas não representam nenhuma desejo reprimido na infância. E aquele buraco enorme eu coloquei no tronco da árvore que desenhei para a professora na escola não é nenhum trauma que carrego feito cruz para o resto da vida. Mas afirmo com toda segurança, eu sabia tudo. E disse. Sua filha está com as notas ruins na faculdade por causa da menina. Que menina? Que menina? Elas gritam comigo. Essa aí sentada no sofá. Só eu vejo a menina. Elas arredondam os olhos assustados. Olha só, preciso descrever a menina! Ela devia Ter uns 8, 9 anos no máximo. Tem imensos olhos azuis. Os cabelos são lisos e negros mas foram cacheados à baby lis. Como eu sei? Ora no sonho a gente sabe tudo! Ela veste um vestido branco muito antigo, com fitas azuis da cor do céu. Sua aparência é de um anjo mas seu olhar tem uma malícia satânica. Olha aí o contraste para chocar! Ela está sentada no sofá e eu sei que ela é muito ruim. Eu tenho muito medo dela. Me empresta o seu lenço? Obrigada. As duas na sala ficam com muito medo. No caminho... Como? Ora sonho lá tem lógica? Me admira o senhor! Estava no caminho e pronto! Ou você acha que tenho um continuísta para cada sonho que sonho? Me deixa. No caminho tinha um bar. No caminho para a faculdade da filha oras. Estávamos indo para lá. E a menina caminhava ao nosso lado. Eu olhava de soslaio e ela me ria um riso cheio de maldade. Assim ó: ruá ruá ruá. Sabe? Ruá! De Bete Davis! Então eu dou um grito: ela mora no banheiro do bar! E o nome dela é Curiosa. Pode? Isso é nome de gente? Não, é nome de fantasma né? Ri, ri, ri. E aí vem a parte mais apavorante, olha só. Tô tremendo só de lembrar. Segura minha mão. Viu? Eu entro no bar. É um boteco de favela. É um boteco da favela Moscou, conhece? Não queira, não queira. Eu entro no boteco vou pé ante pé até a porta do banheiro. Porta modo de dizer. Tem duas ripas atravessas na parede seguras por uma dobradiça vai e vem de um lado e cuspe do outro. Modo de dizer. Só quis dizer que a porta estava presa de modo precário. Não importa a porta. Aí eu grito: Curiosa! Saí daí! Venha para luz! Aí ela responde: o que você quéééééeéééé... Com voz de demônio do exorcista, mas a voz saí da minha boca! Sou eu que estou gritando! E acordo gritando: o que você quéééééééééé, o que você quéééééééééé. Quando dou por mim, vejo meu marido sentando na cama dizendo que só queria um beijinho de boa noite. Louco né? Será que tou pirando? Sei lá, não sabia bem o que contar e lembrei do sonho. Já disse que é minha primeira vez? O que o senhor acha? Devo me internar?

- Bem. Bom dia. Qual é mesmo seu nome? Internar? De modo algum. Eu diria que você é absolutamente normal. Apenas fala um pouco compulsivamente. E é possível que seja míope, acertei? Pois é. Sou um bom observador. E talvez você seja também um pouco distraída, mas só um pouco. É que, bem... é que a clínica de psicologia é ali no fim do corredor. Meu nome é Paulo, sou dentista.

Enquanto ela recolhe um restinho de dignidade que rolou para debaixo do tapete pensa decidida: no próximo ano vai comprar uma garrafa de Vinho do Porto e encher a cara. 

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