MELHORES INTENÇÕES
Fábio Fujita

Virou, definitivamente, referência de nora-que-nenhuma-sogra-quer quando espalharam que a Cidinha havia queimado a água. Ninguém conseguia explicar direito a façanha, mas todas as testemunhas garantiam, jurando a própria morte se fosse mentira: a Cidinha queimara a água. A vizinha da esquerda foi quem primeiro dera o testemunho: de repente, um forte cheiro de água queimada. Foram ver, e lá estava o H2O todo chamuscado. Cidinha já vinha fazendo por merecer o rótulo de pior cozinheira do mundo desde a ocasião em que acreditou que poderia haver harmonia na combinação sardinha em lata/leite condensado. Foi quase expulsa de casa pela mãe, que só mudou de idéia quando a filha ameaçou procurar emprego no restaurante da cidade. Dona Cidona era de bem com a vida e gostava da espécie humana, à exceção do garoto-propaganda das Casas Bahia que, sabe-se, é o cara mais chato da civilização. 

Daí que, quando o Lucão anunciou que iria se casar com a Cidinha, a mãe do Lucão, dona Genoveva, perguntou o que toda pessoa de bom senso perguntaria: onde foi que eu errei, Deus do Céu? Tanta mulher no mundo – só em Minas a proporção luluzinhas/bolinhas é de 7/1 – e o filho vai se casar com a Cidinha? Lucão disse que estava apaixonado e a decisão era irreversível, a favor ou contra a vontade de quem quer que fosse. Dona Genoveva fez chantagem emocional, ameaçando até suicídio. Lucão desdenhou, porque o método escolhido pela velha, o de morrer pela boca, só dava certo com os peixes e o Didi. Dona Genoveva, então, quase de joelhos, implorou por uma (umazinha!) condição. 

- Qual? 

Que Lucão não deixasse, em hipótese alguma, a Cidinha chegar perto do fogão. Se fosse o caso, ela, Dona Genoveva, pagava do próprio bolso uma cozinheira para o futuro casal. Lucão ficou pensando por uns minutos e aceitou. Na época de namoro, Lucão até topara, por mais de uma vez, provar os doces de banana – que tinham gosto de kibe cru (ligeiramente apodrecidos) – da Cidinha. Mas agora era casamento e já não precisava mais negociar uma mão no peito ou a cor da calcinha. Achou que o pedido da mãe seria um auto-serviço. Aceitou a condição.

Foi assim que, nos primeiros sete meses de casados, Lucão e Cidinha viveram felizes para sempre (esquema Vinicius). Aconteceu que, num certo dia, Cidinha se aproximou do fogão. Pior: resolveu fazer uso dele. 

- Meu bem, preparei um bolo para você – foram as palavras de Cidinha, assim que Lucão chegou do serviço.

Lucão fez aquele sorriso mudo de tudo bem, mas intimamente pensou o que qualquer um pensaria: “fudeu”. E a notícia não acabava aí: como faltaram alguns ingredientes, ela teve que fazer certas substituições emergenciais. Foram ver a criatura.

- O bolo está aí dentro? – Lucão, destilando sarcasmo. A patroa não entendeu.

Era uma massaroca que parecia qualquer coisa, mesmo bolo. Poderia se passar por um animal de pequeno porte, uma DVD dos Pretenders, uma arte russa. Menos um bolo.

- Cidinha, você por acaso percebeu que a coisa está cor de rosa?

- Eu disse que tive que fazer algumas alterações de última hora.

- Sim, mas não era pra ser um bolo de chocolate? Anjo, chocolate costuma ser marrom.

Além disso, o negócio exala um inconfundível cheiro de peixe.

- É que achei que estava meio seco e coloquei um oleozinho – ela disse.

- Óleo no bolo? E esse cheiro de peixe, Santo Deus?

- Ah, é que foi óleo de fígado de bacalhau.

Lucão, que costumava ser mais ponderado do que o Parreira, deu sinais de irritação, o que assustou a Cidinha. Por sete meses, a Cidinha jamais vira o maridinho reagir daquela maneira.

- Meu bem, por acaso sabe que dia é hoje? – perguntou Lucão.

Cidinha ficou pensando. O Dia do Índio fora na semana anterior, o Dia do Orgulho Hetero não existia... Enfim, não sabia que dia era.

- Hoje é o meu aniversário.

Lucão odiava seus aniversários, porque, para ele, significavam atestados de velhice. Quer dizer, além da Cidinha tê-lo feito lembrar da data, ainda o fez com um bolo cor de rosa cheirando peixe. Cidinha fez biquinho de choro, do tipo eu-só-tentei-agradar-tá?-seu-insensível. Mas o que o amor não faz, e se acertaram, trocando desculpas, sem chegarem a provar a tentativa de bolo, porque tinham certa insanidade. O problema foi que, uns meses depois, o Lucão, por pura distração, pediu para a Cidinha ferver uma água para fazer chá. Pronto: estava feita a desgraça. Com chá queimado, não há amor que resista, e a própria Cidinha se antecipou em pedir o divórcio. Sabia que a informação, de uma forma ou de outra, chegaria à dona Genoveva.

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