A VERDADE, NADA MAIS
QUE A VERDADE
Erazê Martinho
Meu nome é Marilena Schiavo, tenho 42 anos, sou viúva há exatamente um ano. O motivo pra narrar o que se segue pode ser resumido numa palavra: perplexidade. No dia 23 de outubro do ano passado, assassinei meu marido, uma pessoa que conheci no ginásio onde estudávamos, meu primeiro e único namorado, com quem me casei aos 22 anos - ele era menos de um ano mais velho, exatos oito meses e quatro dias.
O que nos uniu, desde o primeiro momento em que conversamos durante rápidos cinco minutos de um intervalo de aulas, foi a absurda alegria que esse encontro nos causou, antes mesmo de qualquer palavra ser dita. Naquele dia eu amargava pela segunda vez, portanto ainda novidade, a TPM que até hoje me transforma na mais aborrecida e aborrecedora pessoa sobre a face da Terra. De sua parte, Nélson — era esse o nome dele — tivera sua bicicleta, um objeto de desejo conseguido a duras penas, roubada na véspera. Aluno pouco aplicado, como a maioria de nós, conseguira manter, durante quatro longos meses, as melhores notas da classe, em Geografia e Matemática, disciplinas que odiava. Essa aplicação era parte do trato com seus pais, pra conseguir a magrela sonhada.
Mal nos aproximamos, depois de um breve "Oi!", começamos a rir da cena que acabávamos de presenciar: a trombada acidental da professora de Matemática com o professor de Geografia, no pátio da escola. Ela era uma mulher enorme, medindo quase 2 metros de altura e pesando 100 quilos, ele um velho franzino de pouco mais de metro e meio de ossos que não chegavam a pesar 55 quilos. Percebemos, logo depois, a banalidade do acidente e a desproporcional felicidade por ele provocada em nós. Isso, de certa forma, nos encantou.
Desse dia em diante, nos 30 anos de minha convivência com Nélson, tudo sempre foi uma desmedida felicidade. E quando digo tudo é tudo mesmo. Depois de um reencontro na lanchonete freqüentada por nossas turmas, decidimos namorar e, a partir de então, cada carinho, cada beijo provocou em nós o enlevo que jamais nos tinham dado a maconha e as cervejas, consumidos sem exageros nos fins de semana. Quando decidimos fazer amor pela primeira vez — éramos os dois virgens — chegamos a tal êxtase, durante o orgasmo atingido por ambos no mesmo instante, que nos acreditamos ungidos por alguma divindade. Chegamos a comentar, entre risos, como era possível nossos colegas, tanto garotas quanto rapazes, dizerem que a primeira vez deles havia sido uma confusão de receios a ponto de mal saberem se aquilo era prazer.
Casamo-nos tão logo concluímos o curso de Propaganda e Marketing, conseguimos emprego na mesma agência de publicidade, formamos uma dupla das mais criativas e bem remuneradas da empresa e fomos convidados pra dirigir a filial inaugurada no Nordeste, na condição de sócios. Parece exagero dizer, mas até o trabalho foi a extensão da felicidade que marcou todos os dias da nossa vida e que, a cada aniversário, festejávamos com alegria de primeira vez.
Como foi possível essa convivência de conto de fadas terminar com o assassinato de minha alma gêmea? Jamais consegui explicar - nem às nossas famílias, nem aos amigos, nem à polícia, nem ao juiz, nem a mim mesma. Até que hoje, passado um ano, no dia e na hora em que aconteceu o crime, de repente, tudo ficou claro em minha mente e em meu coração. Recordei, com lucidez cristalina, o modo incomum como Nélson chegou dizendo que haviam roubado sua Harley-Davidson 750, a estranha irritação que esse jeito causou em mim - certamente devido à TPM - e tudo mais o que se seguiu até o desfecho. Tão logo termine o êxtase, que hoje está completando trezentos e sessenta e cinco dias ininterruptos, juro que explicarei a todos o acontecido. Juro pelo nosso amor.
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