UM PRESENTE NO INFERNO
Claudio Alecrim Costa

Bolas coloridas, crianças, velhos, mulheres com roupas extravagantes e homens gritando ao ouvido de outros com seus copos de plástico cheios de cerveja. Uma visão grotesca que imaginei como um esboço do apocalipse. Isso sem contar com um grupo tocando uma música estridente, arrancando sorrisos de casais dançando na pista como antropófagos. 

Estava num aniversário. Sabe o que significa isso? Ficar atento a bandejas com salgadinhos que brilham como luz pela gordura, alguém o empurrando levemente porque não existe espaço nesses lugares, com garotos que pisam no seu pé a todo o momento. Um holocausto feito de abraços fraternos e bocas cheias de doces, luzes que prenunciam um calor incendiário.

- Oi!

Era uma mulher. Não como as outras. Um exemplar raro. Tinha olhos verdes como o mar quando está calmo e translúcido. Sob um vestido simples, realçado pelos contornos delicados, via-se um corpo esculpido por Deus. 

- Olá... Você é...?

- A tia da aniversariante.

- Poderia ser a noiva se estivéssemos num casamento. - Ensaiei um galanteio.

- Que isso! Assim você me deixa envergonhada.

Tinha um jeito provinciano e eu tentava desesperadamente arrancar de minha cara a expressão blasê, enquanto nadava fundo no mar verde daqueles olhos.

- Seu sobrinho deve ser um menino feliz por ter uma tia tão bonita.

- Sobrinha.

- Desculpe. Estou desorientado desde que cheguei.

Mesmo estranhando a confusão não me dei conta.

- Seu nome?

- Afonso! 

- Eu sou Melissa. Você veio com quem?

- Sozinho. Adoro festas de aniversário...

Ela riu como uma menina do interior. Poderia devorá-la. Seu corpo todo vibrava quando ria. Não conseguia enxergar nada além de Melissa. Todo o inferno astral daquele aniversário insuportável parecia agora o paraíso.

- Vamos cantar parabéns. Você vem?

- Detesto...

- Como?

- Vamos agora! Estou ansioso!

Atravessamos a turba com esforço inumano até chegar a um bolo grotesco, cheio de confeitos coloridos, emprestando um ar bizarro e idiota ao símbolo máximo do ritual estóico. Ao lado um homem bêbado fazia um discurso frívolo, ao mesmo tempo em que sorria mostrando uma arcada dentária irregular e incompleta.

- Olha ali a aniversariante...

Não era possível. Estava no aniversário errado. Procurei esconder a bola de futebol que mesmo embrulhada mal disfarçava a obviedade pela forma.

- É uma bela menina. - Disse num surto.

- O que você tem aí? É o presente dela?

- Não! Quero dizer, claro que sim. Quero fazer uma surpresa.

- Se ela pudesse ver...

- Ainda bem que não...

- O que disse?

- Disse? Ah! Bobagem...

Parecia uma eternidade. Sentia-me esmagado lentamente por uma multidão que não parava de cantar a música mais patética que já ouvira. A menina era cega e cantava parabéns de costas para a mesa onde estava aquela escultura surreal que chamavam de bolo. Melissa ajudava virando a pobre na direção certa. Ao menos ela estava livre da imagem hórrida em torno de si. A invejei por um minuto.

- Vamos que eu levo você até ela.

Caminhei como no corredor da morte. Planejei entregar a bola na mão da menina e me retirar o mais rápido como um ladrão costuma fazer. Perderia Melissa, que sorria como um anjo para mim. Eu era um mostro idiota. Não tinha sentimentos. Mas que presente se dá para uma menina cega? Um cão treinado? Não havia tempo. E entreguei a bola embrulhada num papel cheio de emblemas de clubes de futebol.

- Isso é uma bola? - Pergunto Melissa.

- Estava sem idéia. Sou péssimo com presentes.

- Tio Afonso! - Gritou a menina enquanto olhava noutra direção.

- O tio Afonso está aqui...- Auxiliou Melissa novamente.

- Me ensina a jogar bola?

- Claro! Está combinado.

- Você é uma pessoa especial. - Segredou Melissa

- Não sou...

- Como assim, Afonso?

- Estou no aniversário errado e esse é o presente errado. - Tentei a tão difícil sinceridade

- Não se culpe. Ela está feliz.

No fundo, todos aniversários eram iguais. Podia sentir o cheiro de enxofre. Não era tão ruim o inferno, imaginei. Bebi avidamente a cerveja sob um calor de 50 graus. A menina continuava tateando os presentes. 

Planejava como e de que maneira mataria minha mãe, pois o endereço escrito com capricho era exatamente aquele. Que sobrinho distante era esse? Estaria ficando louca? Seria uma sobrinha cega e ela trocara o sexo e privara a pobre da visão? 

Ironicamente descobrira o que poderia ser o amor da minha vida. Parecia uma novela mexicana e um romance piegas, cercado de bandeja de brigadeiros e cachorro-quente. Ainda assim estava definitivamente envolvido e apaixonado pela simples e bela Melissa. 

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