De repente
eu era menino, inocente no gostar, nas ações e nos sentimentos. Noutro
instante tomei conhecimento do mundo. Soube da vida, e das sucessões de
imprevistos que nos obrigam a tomar decisões num moto-contínuo. Essa descoberta
está impressa no meu passado marcando a fronteira entre o menino e o homem,
como se fosse uma luz sepultando a felicidade e os medos ingênuos no reino
sombrio do entendimento — penso que o conhecimento me trouxe dissabores.
No dia em que completei seis anos não houve festa. Minha irmã adoeceu.
Tossia tanto que seu corpo estremecia como se fosse explodir. Mamãe me
deixou com uma vizinha e carregou a filha para um hospital. Quieto e calado,
como sempre fora, fiquei no portão vendo os braços da minha irmã pendendo
pelas costas de mamãe. A cada acesso, e os intervalos eram curtos, os
dois corpos se agitavam como se encontrassem barreiras invisíveis e para
ultrapassá-las fosse necessário pequenos trancos em seqüência nos passos
de mamãe.
Não preciso dizer que fantasiei estar sozinho no mundo após vê-las sumindo
na esquina. A sensação em meu peito era de uma imensidão de neve onde
o medo deixava pegadas nítidas. O filho da vizinha trouxe um carrinho
de metal, prateado, lindo, que me fez lembrar o saxofone de papai. Talvez
estivesse cumprindo ordens da mãe, talvez estivesse com pena do menino
estranho e calado que respondia apenas sim ou não movimentando a cabeça.
Desse gesto simpático a marca mais nítida é que o brinquedo de metal não
era presente, era um empréstimo para me distrair do abandono temporário.
Não funcionou, passei a tarde inteira com o medo pisando meu coração nevado.
Desejava poder voltar para casa e encontrar toda a família, mesmo que
fosse para levar um beliscão por nada do irmão, um abraço demorado, exagerado
e sufocante da irmã, a indiferença distraída de mamãe ou carinho da mão
áspera e grande de papai.
Não chorei. Dificilmente chorava. No início da noite papai chegou, mamãe
não, ele me pegou na vizinha e sem que eu pedisse me deu colo até em casa.
Trouxe um brinquedo, pequeno, inútil, eu imaginava que não haveria um
bolo caseiro após o jantar como era tradição familiar em dias de aniversários,
talvez não tivéssemos nem o jantar. Desci do colo direto para o banho.
Saindo do banheiro encontrei sobre a cama de baixo do beliche, onde eu
dormia, uma de minhas roupas de passeio. Não me foi falado, mas eu soube
que íamos sair. Vesti.
Respeitamos, cada qual, o silêncio do outro e, apesar da preocupação com
a ausência materna, não perguntei sobre os outros membros da família.
Meu irmão costumava ir da farmácia direto para a escola, agora no período
noturno, e dificilmente nos víamos acordados durante a semana. Na mesa
da cozinha pão, mortadela e refrigerante. Também um pacote de biscoitos
recheados, todo meu. Lanchei surpreso de ver papai metido em seu terno
risca de giz. Eu estava pronto, mas não esperava acompanhá-lo como vira
meus irmãos fazerem inúmeras vezes. Ele pegou o chapéu e a maleta escura.
No peito a neve desapareceu por completo diante da perspectiva de ser
minha vez de sumir na noite com papai.
Descemos os três quarteirões até a avenida e logo após a esquina, no ponto
de ônibus, pegamos uma lotação em direção ao centro. Pouquíssimas vezes
eu saía de casa. Durante a noite era mais raro ainda. As luzes passavam
e eu comia biscoito doce enquanto tentava ver através dos vidros o que
acontecia na cidade. O caminho, as paradas, as pessoas, tudo me parecia
novo e inventado naquele instante. A caixa do saxofone sacolejava entre
as pernas do meu pai e pousada no tapete de borracha. E eu viajava espremido
entre ele e a lateral estofada do veículo.
Após um tempo de viagem a lotação encheu e fui colocado sobre sua perna,
o que só ampliou meu campo de visão. Não precisava mais esticar o pescoço
para colocar meus olhos no nível do vidro e saber do mundo lá fora. Farelos
de biscoitos se acumularam sobre o terno claro, só percebi quando nos
preparamos para descer e a mão áspera os expulsou de sobre as riscas de
giz com um gesto automático, sem nenhuma censura. Descemos numa rua movimentada,
papai pegou a maleta com umas das mãos e a outra colocou na minha nuca
e empurrou. Andei. Seus dedos grandes e tornados ásperos pelo contato
com cimento eram rédeas me conduzindo. Sentia a pressão do lado esquerdo
conduzindo a reta do meu nariz para a direita e virava. Era fácil compreender
o comando e seguir a ordem muda. Caminhamos por ruas onde todas as portas
estavam abertas e iluminadas. Cada casa um bar, uma lanchonete, uma cantina.
Numa das esquinas papai parou, abriu a maleta, tirou o saxofone, encostou-se
à parede e falou algo que não entendi, mas me pareceu que se eu me cansasse
poderia sentar sobre a maleta escura.
Foi impressionante ouvir o som do saxofone invadir a rua. Notas melódicas
espalhavam a chuva sem águas dentro do meu coração, paralisando meu corpo
de menino - a sensação de chuva sem águas surgiu pela primeira vez durante
uma semana em que choveu todos os dias o tempo todo. Um tédio crescente
me levou a contornar a casa andando rente à parede, me protegendo das
águas que jorravam em cascata pelo beiral do telhado. Senti um cheiro
de terra molhada entrando pelas minhas narinas, invadindo minha alma e
enchendo o coração de saudade indefinida. Pensei que se abrisse os braços
poderia abraçar a chuva sem me molhar, e foi o que fiz. Abri os braços
e fiquei ali, rente à parede, de olhos fechados, sentindo o peito inchar
enquanto as águas batiam no chão e respingavam meus pés e canelas até
os joelhos. Eu era pequeno. Guardei para sempre a sensação da chuva sem
água, e apenas ela poderia explicar o arrepio percorrendo minha espinha
e eriçando meus pêlos quando a primeira música acabou e papai começou
outra tão pungente quanto a anterior.
Era mais linda, mais tristemente linda, e olhei à minha volta esperando
encontrar o mundo inteiro imóvel. Mas as pessoas passavam, entravam, saíam,
indiferentes ao som que tanto me afetava. Era estranho! Ao final da terceira
melodia papai me deu seu chapéu e me fez entender que deveria estender
para os passantes enquanto ele tocava. Assim o fiz. De repente percebi
que as pessoas continuavam a passar, entrar, sair, no entanto não tão
indiferentes quanto me pareceram anteriormente. A maioria parecia afetada,
ligeiramente tocada pelo som, apenas disfarçavam bem. A mão estendida,
com o chapéu na ponta, sem saber ao certo o que estava acontecendo, eu
fiquei ali, vendo moedas e notas saltarem esporadicamente para dentro
do chapéu de papai. De algum modo entendi que as pessoas, todas estranhas
para mim, gostavam tanto de ouvir papai tocando que pagavam para ele continuar.
Isso me deixou feliz e encantado com o poder do meu pai. E este encantamento
era um belo presente de aniversário. Infinitamente melhor que o brinquedo,
miúdo, ainda embalado no plástico e deixado sobre a cama de beliche.
(continua
no próximo tema)
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