DIA DE FLORESCER
Ana Claudia Vargas
O dia nasceu como nascem todos os dias. Nasceu assim tímido na pouca claridade do sol pra lá da igreja, nasceu assim suave, no vento úmido que vinha das matas que rodeavam a cidade.
Era um dia igual a todos. Um dia igual a tantos. Um dia, apenas. E na claridade levemente ensolarada deste dia comum, Antonieta se perdia entre os afazeres todos do seu dia: eram tantos e tão iguais. Como os dias. Se sucediam assim cheios de uma banalidade carregada de surpresas inexpressivas, como os dias.
As crianças gritavam pelas salas e quartos da casa enorme. Os gritos ecoavam, batiam no teto e ganhavam a rua. Lá libertos, voavam em direção ao céu azul do dia que seguia seu curso.
Uma dona de casa como tantas: assim Antonieta. As crianças deviam ir para a escola. Os mais velhos iriam para a roça ajudar o pai. O pai, seu marido, estava viajando. Havia ido pra capital comprar coisas que os homens gostam de comprar: ferramentas, ferramentas e ferramentas. “Afinal, a fazenda dá muito trabalho. Se não sou eu nesta casa...”.
Antonieta até ouvia a voz dele – seu marido – dizendo da necessidade primeira de se comprar machados, facões, arados, e toda a quinquilharia que ocupava um galpão inteiro na fazenda. O estereótipo do homem do campo: assim o marido de Antonieta. Estava sempre ausente, sempre distante e sempre dizendo “Se não sou eu nesta casa...”.
Antonieta pensava nisso e sorria um riso levemente triste. “Tanta coisa pra fazer nesta segunda-feira. Segunda-feira: odeio segundas-feiras!” Com esforço, Antonieta tentava conter seus pensamentos. Com esforço fazia as coisas todas que ocupavam sua lida diária de dona de casa. Uma vontade de... “de quê mesmo?”, pensava ela. Já nem se lembrava mais. Nem se lembrava mais. Um cansaço: carregando as roupas para lavar, dizendo para Cícero – o filho mais novo – “seu uniforme está na primeira gaveta, menino, olha lá!”- pensando no que faria para o almoço, lembrando de que não deveria se esquecer da reunião na escola no outro dia – “terça às 5 da tarde”, havia dito a professora do Antônio, o do meio – e de que na sexta de madrugada deveria ir para a fazenda junto com o marido...
Ah, em quanta coisa Antonieta pensava... Tudo junto, misturado, desconexo, bagunçado, assim atropelando e exigindo dela mais do que ela podia dar.
Como quando se perdera na imensa rodoviária da capital e não via entre as caras todas a cara do seu marido e depois quando ela o encontrara calmamente tomando café na lanchonete e ele a olhou com cara de “...só você pra se perder aqui, né Antonieta?”, hoje ela se sentia assim.
Vontade de fixar o olhar nas coisas sem piscar e ver até o fundo de tudo. Vontade de sair andando pela cidade, assim, sem destino, ir a pé até o açude para ver a imagem mais linda que ela já tinha visto: o azul fundo do céu refletido no fundo das águas.
Antonieta estava sentada no alpendre de sua própria casa. Ela nunca fazia isso. Sentar-se lá na hora em que deveria estar preparando o almoço? Não, nunca fizera isso. Nunca.
Era uma dona de casa recatada, respeitada por todos da cidade. Antonieta ouvia que a chamavam. De longe, ouvia as vozes, mas seus olhos só viam um azul imenso, bem grande mesmo, ocupando toda a sua visão de mundo, se misturando à realidade e transformando a realidade.
Alguém passou na rua e a cumprimentou mas ela não percebeu. Agora só tinha olhos para as formigas que esburacavam seu jardim no qual ela havia plantado um mês antes: roseiras, beijos, dálias, sempre-vivas, tudo misturado – como a própria vida – tudo misturado. E as formigas destruíam seu jardim.
Mas Antonieta não se importou com esta descoberta. Quietinha no canto do grande alpendre da sua grande casa, um lugar no qual ela nunca – nunca - havia se sentado, ela de repente foi reparando nas veias de suas mãos calejadas, e suas mãos calejadas acariciaram seus cabelos sempre desgrenhados, e ela reparava agora nos seus pés com veias saltadas, em suas pernas repletas de varizes e sentindo o gosto de sal na boca, engolindo uma lágrima, ela entrou em sua casa e não viu o olhar assustado dos seus filhos – ela entrou em sua casa e foi até o banheiro.
Lá no grande, imenso espelho de cristal, ela viu que seus cabelos estavam insuportavelmente brancos, e viu que as rugas haviam se espalhado com a rapidez de uma queimada em tempo de seca e já tomavam – quanta ousadia - todo o seu rosto.
Ao redor da boca, no canto dos olhos, criavam vincos e abriam algo que ela comparou a estradas, em sua face. E Antonieta procurava no espelho o frescor de quando se casara, e procurava aquele sentimento que a fazia se olhar no espelho com um prazer renovado todas as manhãs até... até quando? Até quando mesmo? Até os 40? Ela nem se lembrava mais. Assim como nem ouvia a filha a chamando, assim como não conseguia parar de se olhar e de ver refletidos no espelho grande do banheiro naquela manhã normal de segunda-feira: todos os seus descaminhos, todas as suas dores, todos as suas vontades reprimidas, toda a sua vida.
“Mãe! O que que aconteceu? Abre a porta, mãe! Fala com a gente!”. E lá do banheiro ela ouvia que eles choravam, e ouvia que o menorzinho se desesperava já sem saber o que acontecia.
Com muito esforço Antonieta parou de se olhar no espelho e parou de ver seu mundo refletido nele. Com muito esforço, ela abriu a porta e com estranheza sentiu todos os abraços e as perguntas dos seus filhos. “Não foi nada, meninos”, dizia ela. “Um mal estar, só isso”.
Todos os olhos a miravam e em todos havia uma pergunta e ela ia dizer o quê? O que ela ia dizer para os seus tantos filhos? Era tanto. Era tudo. E a vida descendo e rasgando certezas, destruindo caminhos antigos, criando caminhos novos. Era tanto. E foi isto que ela fez naquele dia, naquela segunda-feira igual a todas até aquele dia: Antonieta disse para a filha mais velha “ cuide do almoço, a mãe só volta no fim da tarde” e Antonieta não deixou que nenhum olhar a traísse, não respondeu a nenhuma pergunta; ela pegou sua bolsa e saiu.
Na rua, sentiu o vento no rosto e ele lhe falou de descobertas. No salão de beleza da amiga Dirce cortou e pintou os cabelos e fez as unhas do pé e da mão.
Atravessou a praça vazia aquela hora e comprou na única loja da cidade, um vestido que ela queria há muito, muito tempo. E saiu sozinha para mais longe ainda: visitou antigas amigas, conversou com os velhos colegas da escola, e contou casos e fez algo que há anos não fazia: tomou um sorvete.
E ela até sorriu. Sorriu muito, relembrando histórias do passado, histórias de quando era uma jovenzinha pura que só queria, vejam só: casar e ser feliz.
Ser feliz: em que curva mesmo ficara esse desejo? Era o que ela tentava descobrir. Por isso, Antonieta refazia todos os caminhos e andava em todas as ruas da sua pequena cidade.
E ela só deu por si quando a noite caiu e o sino da Igreja da Matriz ecoou 7 horas na noite estrelada da sua cidade.
Cansada ela voltou. De longe avistava sua casa – sua? sim, agora sim: sua casa– na esquina mal iluminada. Sim, a rua mal iluminada, a casa exatamente igual e os filhos estavam todos sentados na calçada, com grandes olhos chorosos e espantados.
Eles mal reconheceram a mãe, tão bonita e diferente ela estava. Antonieta passou por todos eles e beijou com sincero afeto todas as faces dos seus – sim, agora seus – filhos.
Nada disse Antonieta. Nem era preciso dizer: atravessou o corredor e diante do espelho - aquele mesmo que lhe mostrara sua face triste na manhã daquele dia – disse de si para si “ Feliz Aniversário, Antonieta. De verdade e para sempre: feliz aniversário”.
Na noite daquele dia, milhões de estrelas brilharam no céu da cidade – como em todas as noites de todos os dias antes daquele dia – mas naquela noite, nenhuma delas brilhou mais do que o brilho que Antonieta havia descoberto em si mesma e que era a celebração de sua vida, a celebração de uma história especial: a sua.
“Feliz aniversário, Antonieta. E de hoje em diante, seja feliz.”
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