BRUXISMO
Sônia Cintra

A crise não passava. Noite de insônia e suor noturno, mãos crispadas e mandíbulas travadas. No dia seguinte, foi ao dentista. Espera que espera, chega sua hora e vez. Entra no consultório, pendura a bolsa, ajeita-se na cadeira. Depois de muito fala aqui, cutuca ali, o diagnóstico: A menina sofre de bruxismo. Então é realmente sério, doutor? Seríssimo, responde o profissional, por detrás da máscara asséptica. No estágio em que está, continuava no mesmo tom, diria que é gravíssimo. E qual seria o tratamento? pensava a menina, de olhos arregalados, enquanto soltava o babador das presilhas metálicas. Será que tem cura? arriscou. Cura, exatamente não, pois parece crônico, ponderava o dentista; porém, com empenho e tratamento, tudo leva a crer que possa ser controlado.

A assistente já se desarrumava para deixar a sala de exames, tirava a touca e o avental verdes e um fio de cabelo imaginário na blusa, dando-se, assim, o tempo necessário para ouvir a terapia prescrita pelo doutor à paciente. A menina anda muito estressada, o que é que há? Brigou com o namorado? Vai prestar vestibular? Não está a consumir drogas, está? Olha que isso não resolve. Já é comprovado nos melhores países do mundo. Veja se consegue relaxar um pouco, divertir-se mais, desfrutar a vida. Às vezes, fazer nada já é muito. Quem sabe um hobby? Bom, de qualquer modo, quero vê-la na próxima semana, neste mesmo horário. Marque com a secretária, ao sair, está bem? Sim, vou tentar seguir a orientação e retorno na semana que vem.

Você tentou de fato relaxar? Empenhou-se em fazer nada? Divertiu-se de verdade? Com tudo a menina concordava com a cabeça, pois, de boca aberta como estava, era-lhe difícil responder com palavras. Ainda mais que o sugador, além da saliva, parecia sugar-lhe também a língua e deitá-la pia afora. O dentista não dava pausa para ouvir resposta. A menina está amarelada. Tomou sol demais? Alguns filtros solares modernos mudam a cor de bronze para mostarda, não é? E essa espinhazinha no queixo e aquela outra ali, na ponta do nariz, não existiam semana passada. Donde é que surgiram? Mas deixemos de lado as espinhas e vamos aos dentes. Alguma dor? Não, doutor, só a pressão no queixo; e, acredite, fiz tudo direitinho: relaxei, brinquei, desfrutei. Fiz nada o tempo todo. Sim, sim, mas abra bem a boca para avaliarmos. Não é possível! A menina parece pior. Dentes mais gastos, olhos mais fartos. Talvez, seja genético.

A crise não passava. Nem mesmo a menina lendo Kafka, que uma professora recomendara à classe, durante uma aula de literatura. O tempo passou, o dentista casou e mudou. Foi para Portugal e perdeu o lugar. A professora, que gostava de poesia, saiu do colégio e foi estudar urbanismo. Em um belo outubro, à meia-noite, a lua cheia arredondou no céu e as abóboras transgênicas amadureceram na terra. Era o sinal. A menina tinha certeza. Era o grande dia. Chegara o grande evento da sua vida, afinal. De queixo erguido, resolvida, tomou da vassoura ancestral e saiu pela janela, voando noite adentro. Se foi ou não colher amoras, não o saberemos desta feita. Quem sabe da próxima vez. Os dentes? Ah! os dentes! Estão firmes e fortes e fantásticos, desde então. Fazem sucesso até na nova propaganda comercial de fio dental, na TV. Pressão? Não, não. Nunca mais.

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