METAMORFOSE
Raymundo Silveira
Não nego! Tinha tanto pavor de sangue que a primeira vez que me cortei, com uma lâmina de barbear, perdi os sentidos. Aquele líquido estranho, rutilante, rubro, viscoso, não poderia ter saído de dentro de mim; aquilo era absurdo. Sentia-me como se estivessem me revirando pelo avesso e aquela nódoa vermelha fosse o primeiro sinal das minhas entranhas sendo expostas. Não acreditava que aquela coisa asquerosa fosse minha. Nunca senti escrúpulos, nojo, repugnância pelos excrementos e secreções do corpo humano. Fezes, urina, catarro, saliva, meleca de nariz, cerúmen, suor, chulé, e até mesmo aquela água pegajosa que escorria das feridas crônicas, jamais me incomodaram. Mas, bastava ouvir a palavra sangue para me sentir nauseado a ponto de não conseguir conter qualquer alimento no estômago - vomitava sempre. Às vezes costumava passar horas na cozinha. As aves eram abatidas sempre pelo método de tração do pescoço e aquilo não me impressionava
— pelo contrário, sentia até uma certa emoção gratificante. Certo dia, a cozinheira estava sacrificando uma galinha pelo método do sangramento no pescoço, a fim de aproveitar o sangue para prepará-la ao molho pardo. Tive uma vertigem, perdi novamente os sentidos e jamais pude ouvir alguém falar em molho pardo. Até hoje ainda não consigo entender aquelas minhas reações tendo em vista o que aconteceu mais tarde. Quando tinha doze para treze anos vi um amigo de infância todo banhado de sangue. Havia caído de uma bicicleta, cortara o supercílio e fora atingida uma artéria calibrosa. Minha primeira sensação foi parecida com aquela quando eu próprio me cortei pela primeira vez, mas ao ver a dor estampada no semblante do meu companheiro, senti um súbito e imenso prazer. Desde então, passei a relacionar todo tipo de sangue com uma experiência sensual. Nunca me ocorrera que sangue pudesse estar associado a dor. Acredito que foi esta associação que me fez mudar completamente. Quando minha irmã menstruou pela primeira vez, minha mãe disse que ela estava sentindo muitas cólicas e por causa disto não poderia ir à escola. Naquele dia, vi sua calcinha jogada ao chão do banheiro e estremeci de prazer. Minha irmã e eu sempre tivéramos uma relação intermitente de amor e ódio, mas naquele instante em que vi sua calcinha manchada de sangue, e eu soubera que ela estava sentindo dores, aqueles dois sentimentos e fundiram num só e me deu uma vontade louca de comer minha irmã e de esfaqueá-la, ao mesmo tempo. Tudo o que se associasse a sangue passou a me fascinar: a cor, o cheiro, a viscosidade, o sabor
— sim eu já havia provado sangue, pois sempre que cortava o dedo, punha-o imediatamente na boca
— e até a palavra <i>sangue</i>, que antes me aterrorizava passou a me excitar; mais do que isto, tornara-se uma obsessão. O matadouro não ficava distante da minha casa e comecei a freqüentá-lo assiduamente só para assistir ao sangramento dos animais. Quando o açougueiro furava a jugular de um boi, de um cabrito ou de um suíno, a visão da saída do primeiro jato me dava um prazer tão intenso como se estivesse ejaculando.
Meu primeiro assassinato aconteceu juntamente com a primeira experiência sexual. A princípio ainda tentei me conter, porém quanto mais me excitava, sentia que jamais atingiria o orgasmo se não visse correr muito sangue. Fiquei desesperado. Tratava-se de uma prostituta e já estava se aborrecendo comigo.
"Se não gozares logo, não vou mais esperar muito tempo". Aquelas palavras provocaram uma reação semelhante à que senti quando vi a calcinha da minha irmã. Só que a mistura de ódio e excitação foi mil vezes maior. Corri para a cozinha, peguei uma faca afiada e, sem que ela esboçasse qualquer reação, esfaqueei-a mais de quinze vezes no pescoço, no tórax e no abdome. Quando ela parou de gritar e de respirar minha excitação era tanta que a ereção se tornou dolorosa. Abri-lhe as pernas e me deitei sobre aquele corpo ainda quente e ensopado de sangue. Até hoje não consegui esquecer a intensidade daquele orgasmo. Como jamais havia freqüentado o baixo meretrício, não fui suspeito nem muito menos indiciado. Depois disto cometi mais catorze assassinatos. Todos eles a fim de me satisfazer sexualmente à vista das hemorragias. Esta palavra
— hemorragia — está para mim, como ejaculação está para as demais pessoas. Nunca me arrependi do que fiz. Mesmo depois que fui preso, achei que cada ato por mim praticado valeu a pena. E, se pudesse, faria tudo outra vez.
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