O
RETORNO
Ly Sabas
Quantos dias se passaram desde o início dos sonhos? Não saberia dizer. Sentada no banco preferido, quase escondido embaixo da copada árvore, devaneia com o bastidor esquecido ao colo. A brisa perfumada que provem do bosque, balança os galhos, deixando-a entrever o campo cultivado que se estende além da floresta até o palacete.
Abaixa-se e guarda, cuidadosamente, as agulhas e o emaranhado colorido das linhas na pequena cesta que repousa a seus pés ao lado de um filhote de galgo.
A lambida feliz que recebe indica que o cãozinho gostaria de voltar para junto de sua mãe. Talvez estivesse com fome. Levanta-se, pendura a cesta no braço esquerdo e seguida pelo companheiro, um tanto vacilante nas longas pernas, envereda pela trilha. Pára antes de chegar à entrada do pomar para admirar o portãozinho de madeira emoldurado por trepadeira de rosas selvagens, que o velho jardineiro teima em dizer nunca haver plantado.
Cortando caminho através do pomar chegaria mais rapidamente à cozinha e subindo pela escada, utilizada somente pelos serviçais, alcançaria o pequeno salão onde o professor de música a esperava, antes que dessem por sua falta. Há dias tentava criar coragem e falar com ele a respeito de seus sonhos. O homem alto, ainda jovem, de olhar sofrido e fala mansa, sempre pronto a ouvir seus anseios de adolescente apaixonada pela vida, saberia entender o que tanto atormentava suas noites.
— Desculpe o atraso. — fala ao mesmo tempo em que, fazendo uma pequena mesura, coloca no chão o amiguinho que dispara porta a fora em busca das tetas fartas de sua mãe.
— Não se preocupe, Senhorinha, cheguei um pouco adiantado. Queria revisar a partitura que estudaremos hoje.
Fala respeitosamente, procurando não deixar transparecer a angústia que sentira durante a demora de sua discípula. Depois de ajudá-la a se acomodar, alisa a folha amarelada pelo uso e, dando a volta ao piano, coloca-se a sua frente.
Deixando as mãos cruzadas ao colo, ela o encara diretamente no olhar de um cinza profundo, e sussurrando, quase inaudivelmente diz:
— O senhor acredita que nos sonhos nos transportamos para algum lugar onde já vivemos? — sem esperar por uma resposta, fala atropeladamente, com receio de serem interrompidos por algum dos criados, que sempre apareciam com a desculpa de trazerem um lanche, mas na verdade, para vigiá-los a mando de sua mãe.
— Sonho continuamente que estou no alto de uma encosta, olhando para uma praia selvagem. De lá observo a aproximação de algumas pessoas, em atitudes suspeitas. Subindo pela trilha, rapidamente chegarão aonde me encontro. Apavorada fujo em direção a uma construção de arquitetura estranha, em ruínas. A distância é muito grande e desespero-me. Paro e levantando os braços para o alto, pronuncio algumas palavras em um dialeto que desconheço. Raios rasgam o céu e caio desmaiada.
Para ofegante, o rosto muito corado, por estar se abrindo com alguém em quem confiava somente por parecer viver no mundo tão deslocado quanto ela.
— A menina já contou seus sonhos ao capelão? — conhecia, intuitivamente, a resposta. O padre, de fala nervosa e andar apressado, não daria ouvidos a sonhos ou preocupações que não fossem dirigidas as pobres famílias do pequeno condado.
Faz um leve abanar com as mãos, passando nervosamente a língua nos lábios, e continua seu relato:
— Desperto em uma cabana miserável. No único cômodo só vejo uma lareira onde um caldeirão ferve algo de aroma indefinido, uma mesa e um banco. Alguns utensílios dependurados do teto refletem a luz do fogo. Sinto-me em casa. Ajoelho e rezo uma oração incompreensível. Alguém entra, viro-me em sua direção e... acordo...
— Então não chega a ver quem é?
Responde primeiro somente com a cabeça; depois de alguns segundos, respirando fundo diz;
— Mas sinto que sei.
— Os sonhos são sempre iguais?
— Não, em alguns as cenas são diferentes, como continuações. — remexe-se nervosamente — Vejo-me correndo entre as árvores de um bosque enevoado, ouço gritos, exclamações de impropérios e latidos. Chego com dificuldade em uma clareira e novamente dirijo-me para a construção em ruínas. — a essa altura do relato, o músico já havia se ajoelhado ao lado do banco e segurava as mãos de sua discípula, como se estivesse junto, enfrentando os mesmos perigos. — Mas nunca chego até lá. Não sei o quê é.
— Em outros estou novamente na praia onde alguns barcos estão ancorados, mas as pessoas não estão lá. Ou me vejo no bosque recolhendo ervas. Correndo alegre, de braços abertos, cabelos ao vento. Mas, principalmente, na cabana entre potes e ungüentos... — continua lentamente como que hipnotizada — Sei que a mesma pessoa está lá, orientando-me, ensinando-me, protegendo-me. E, aos poucos, meus perseguidores não me intimidam mais.
Para de falar e abre um sorriso maravilhoso que deixa o pobre homem extasiado.
— Continue — fala mansamente, acariciando as pequeninas mãos que ainda retêm.
— É muito estranho, professor. — o sorriso amplia-se e os olhos brilham de emoção — Sou feliz naquele lugar. Com o homem sem rosto. A sensação de bem-estar supera a angústia, o desespero, o medo.
— Então o que a preocupa tanto, Senhorinha? — enquanto fala, levanta-se e volta à posição anterior. À frente do piano. Receia ter deixado transparecer o quanto seus anseios eram importantes para ele.
No mesmo instante o sorriso e o brilho desaparecem e ele não consegue definir a expressão de seu olhar. Arrepios nervosos sacodem o delicado corpo.
— Se meus sonhos são reminiscências, chegará o momento em que reviverei o quê quer que tenha acontecido. Cedo ou tarde saberei como a corajosa aprendiz se transformou em um ser inseguro e dominado por tantas regras. E, talvez, me recuse a acordar...
Lentamente leva as mãos até o teclado e a música que invade o salão possui a força e a determinação que ela só encontra lá, em seus sonhos.
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