O DONO DE UM SONO
Jorge Gomes da Silva

A gota de orvalho agarrou-se à ponta da folha, mesmo à beirinha, adiando o mergulho que saboreava por antecipação. Um pouco abaixo, bem na mira, o dono de um sono nem sonhava quão próximo estava o momento de o perder.

Uns minutos mais. O regresso do sol, o adeus à madrugada declamado com palavras de luz. Uma nuvem comprida espreguiça pelo céu escuro a incandescência laranja do pijama de fogo que o astro-rei lhe pintou. A gota hesita, bonita, cristal, maquilhada de fresco pelo reflexo do amanhecer.

Encostado à árvore, o dono de um sono ronca o desagrado pelo alvoroço da passarada acabada de acordar. Contudo, abraça o seu sono como uma almofada e prende-o a si. Em vão. De seu, apenas a ilusão de possuir. Outra fantasia.

O dono de um sono nunca temera a brisa da manhã que se levantava por essa hora. Sentia-a como uma carícia gelada que repelia à bruta com um arrepio. Não via o bailado desenhado a poucos metros do chão pelas coisas pequenas, mais leves, que o sopro matinal conseguia movimentar. Como o pólen das flores ou o som dos ribeiros ou as lembranças perdidas no tempo, guardadas na magia do vento, libertadas por ordem da saudade nos prados infinitos da imaginação de cada um.

A liberdade da gota de orvalho trazia-a a brisa com um leve safanão na ponta da folha onde insistia ficar. Livre, afinal, para prosseguir um caminho e completar um ciclo destinado a não ter fim. Empurrada para o cumprimento do dever num cenário de libertação.

A vida do dono de um sono também se faz um pouco assim. Julga-se sem amarras, proprietário de coisas e de pessoas, no controlo absoluto da situação. Nem sonha, adormecido profundo, que o destino é gerido por forças tão simples e inofensivas como a primeira brisa da manhã. A gota de orvalho cedeu.

Uma família de cervos, poucos metros adiante, testemunhou o salto da gota de orvalho. Como uma pequena porção de arco-íris, assinalou o pote de ouro, o tesouro, bem no meio da testa do dono de um sono que assim o deixaria fugir. Em sobressalto, abriu os olhos e o sono que não lhe pertencia escapou. Abriu os olhos mas continuou sem ver aquilo que a gota de orvalho lhe ofereceu. Viu apenas as peças de caça à mão e procurou a espingarda com a sofreguidão natural de um predador. Faminto da emoção de matar, como os antigos, mas sem depender dessa ostentação da sua posição ilustre, bem no topo da cadeia alimentar. Até a natureza se indignou. E a brisa da manhã aumentou de intensidade, soprou a desilusão que o dono de um sono lhe dava com a sua reacção animal.

A nuvem sacudiu a preguiça, convocou os reforços, escureceu. O vento guerreiro reunia as tropas no céu e mobilizava na terra, à vassourada, todas as coisas capazes de corporizarem a fúria que rodopiava sobre si própria numa espiral de destruição.

A trovoada alertou a família de cervos para a necessidade de fugir. O dono de um sono praguejava e disparava à toa, cego pela violência do vento e pela sua investida em forma de pó.

Tentou recarregar a caçadeira no meio da confusão, já a família dos cervos sossegava no abrigo inexpugnável de um rochedo ancestral. Munições espalhadas no solo, medo espelhado no rosto, cinzento zangado, cimento pesado, pronto a esmagá-lo quando o vento parasse e nada mais houvesse para o amparar. Um raio atingiu o galho com uma folha na ponta de onde uma gota de orvalho saltara, tempos atrás. O pedaço de árvore sacrificado, atraído pela terra, desceria até encontrar pelo caminho a desprotegida cabeça que o vento cuidara de destapar.

A gota de chuva saltou de uma nuvem minutos depois. Um ponto distante na paisagem marcava o objectivo, um corpo inanimado na clareira da floresta que o sol conseguia iluminar, fresta aberta nas nuvens pela vontade do céu.

O vento carregou-a nos braços como a uma filha, até perto do chão. Depois, beijou-a com um sopro e ensinou-a a planar até ao ponto de chegada. Prometeu-lhe ao ouvido, como um pai, que seguiria o plano traçado.

Quando a gota de chuva explodiu na testa do dono de um sono, as outras já saltavam das nuvens em grupos ordenados e desenhavam no céu um arco-íris monumental. Terminava no ponto que uma gota de orvalho assinalara, tempo atrás, no mapa imaginário de um tesouro que só ela sabia existir.

Fascinado pela beleza que lhe oferecia a natureza, um milagre de perfeição, o dono de um sono chorou. Desertou da sociedade, arrependido, eremita na floresta que juraria para sempre proteger.

À sombra da espingarda ferrugenta que o musgo cobriu, o dono sem sono não sentiu um dia o impacto da gota fria no sangue que lhe escorria por onde a bala assassina entrou.

Reza a lenda que se transformou na última gota, numa lágrima, transportada sobre a clareira sem fim pela brisa seca da manhã, para os olhos tristes de todos quantos acordaram tarde demais.

Isto terá acontecido no mesmo dia em que a única árvore da derradeira floresta finalmente tombou. 

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