MUDANÇA
Daisy Melo

Em cima da toalha roxa, uma carta sobressaia-se: a Torre. A chama da vela vermelha tremeluzia fingindo que ia apagar e a espiral da fumaça do incenso, odor de jasmim, enovelava-se em caracóis infinitos, entrando pela sua narina. Homero sentia-se constrangido: o que estava fazendo ali? Que absurdo. Ele era sempre tão ponderado. Tão certinho, como dizia Amália, metódico, justo, correto. O que estaria fazendo, na frente de uma mulher estranha que colocava cartas? Cartas, minha Nossa Senhora! Ele nunca acreditara em cartas, jogos de búzios, crendices ou adivinhações.

Que mudança era aquela que se apoderara dele deixando-o assim bobo? Melhor dizendo: transformando-o num babaca?

Respirou fundo e tirou de dentro do bolso o lenço branco, imaculado. Enxugou as gotas de suor que escorriam grossas pela testa, apesar de ser inverno na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Eram 3 horas da tarde e o dia estava claro. Mas ali, no aposento pequeno e entupido de móveis, o dia parecia ter ficado lá fora. Um cheiro de mofo misturado com flor velha deixava-o nauseado.

A mulher a sua frente, olhava com muito interesse para as cartas pousadas na mesa: A Torre e a Morte. Sinal de mudança, para o bem ou para o mal. Do bolo de cartas a sua direita retira mais uma: A Imperatriz.

— Uma mulher surgiu na sua vida. Ela é jovem e bela. E está transformando seu coração. Desatino. Desequilíbrio. A Torre demonstra mudanças profundas, seguidas de dor. Queda. Não vai ser fácil. Mas é inevitável. A morte... hesita (ele percebe uma contração muscular no rosto dela?), significa cortes profundos. Entrega-lhe o bolo de cartas. Ele corta novamente o baralho. 

— Hum...hum... dor e desatino. Mudança e sofrimento. Fecha o jogo num movimento rápido: 50 reais.

Homero paga. A angústia que o fez ir até a cartomante se avolumara e lhe causava um aperto na garganta. Quase uma dor. Sentia-se pior. Foi até lá por insistência de Celina. Precisava de uma solução, de alguém que lhe dissesse o que fazer. Qual medida tomar. Queria livrar-se do cheiro e da visão do corpo de Celina. Queria esquecer suas curvas macias e firmes. Sua pele cor de leite. Os cabelos louros, anelados com cheiro de alfazema. A boca carnuda. Ah, aquela boca que o fazia ter pesadelos à noite. Sonhava que a mordia até sangrar e o sangue pingava no seu peito, manchava o lençol e ele se afogava naquele sangue. Acordava num desvario, a respiração sôfrega. O corpo todo trêmulo. 

No que estava se transformando?

Ele um homem sempre tão pacato. De casa para o trabalho, do trabalho para casa. Sem nunca ter traído Amália. E seus filhos, já rapazes, o que diriam? E Amália? Tão boa, tão correta. Mas gostava dela como uma irmã. Olhava para ela dormindo à noite e não sentia mais tesão, pelo menos não o tesão dos primeiros tempos. Mas com Celina...

Não voltou ao escritório. Hoje, terça feira, Amélia está fazendo seu trabalho voluntário no Hospital do Câncer. Os filhos na faculdade. Iria ter algumas horas de paz. 

O cachorrinho poodle latiu saudando-o assim que entrou no apartamento, deixando para trás o som do trânsito da Rua Tonelero. Foi até a cozinha, bebeu um copo d’água, abriu a latinha de cerveja. No espelho do banheiro viu um rosto macilento e velho que se misturava com a face encarquilhada da cartomante. Passou a mão pelo rosto, a barba grisalha apontava no queixo. O olhar baço, olheiras profundas. Não se reconheceu. Em qual bicho ignóbil, asqueroso estava se metamorfoseando?

O rosto no espelho respondeu com um sorriso irônico. Era um rosto que não era o seu, com um olhar satírico, esquizo. Tomou um banho demorado, fez a barba e colocou a loção com cheiro de pinho. Escolheu a roupa e vestiu-se cuidadosamente. 

Saiu, trancou a porta. Foi ter com Celina. 

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